Seqüências Parisienses
Observações sobre as regiões austrais e boreais
terça-feira, 8 de setembro de 2015
quarta-feira, 15 de julho de 2015
PARLAMENTARISMO E PRESIDENCIALISMO
O artigo abaixo foi publicado
há mais de 22 anos, nas vésperas do plebiscito sobre a forma e o sistema
de governo de 21 de abril de 1993. Volto a publicá-lo no blog porque o parlamentarismo é de novo apresentado como a panacéia para os males políticos brasileiros .
O texto original está aqui
CULTURA DEMOCRÁTICA E
PRESIDENCIALISMO NO BRASIL[ 1]
Luiz Felipe de Alencastro
( Novos Estudos Cebrap, nº 35, mar. 1993, pp. 21-30. )
Jürgen Habermas comentava no
Cebrap seu artigo "Soberania popular como procedimento", publicado
nesta mesma revista. Na discussão ocorrida em seguida uma pergunta foi feita
ao filósofo: do seu ponto de vista, haveria um corte nítido, uma dissociação
categórica, entre a tradição democrática e a cultura democrática?, ou, ao
contrário, existiria uma causalidade historicamente determinada entre a
primeira e a segunda proposição? Habermas disse sem hesitar que não ligava a
cultura democrática ao determinismo histórico-geográfico, isto é, não pensava
que a democracia só pudesse surgir em certos países e não em outros. No
entanto, sua resposta, necessariamente curta, deixou a interrogação no ar,
desapontando os que gostariam de ter ouvido uma afirmação mais enfática sobre a
viabilidade universal da cultura democrática.
Na verdade, o tema condiciona
o entendimento da transição atualmente em curso no Brasil e em vários outros
países. Depois da queda do Muro de Berlim, o grau de correlação entre tradição
e cultura democrática parece crucial para avaliar o futuro político das nações
a leste do rio Elba — incluindo os Länder prussianos da ex-RDA — moduladas pelo
autoritarismo gerado pela Segunda Servidão a partir do século XVI. Na outra
ponta do mundo, feudal até o século XIX, o Japão poderia, possivelmente[2], ser incluído no
âmbito dessa reflexão, na medida em que o parlamentarismo monárquico ali
instaurado em 1946 pelos Aliados não foi até hoje submetido à prova da
alternância político-partidária.
Voltando ao Brasil, cabe agora
formular a questão cujo enunciado, mutatis mutandis, também concerne russos,
búlgaros, poloneses, ucranianos, japoneses: a história contemporânea brasileira
compreende uma tradição política apta a fundar uma cultura democrática? Para os presidencialistas democráticos a resposta é sem dúvida afirmativa .
Levada às suas últimas consequências esta interpretação conduz, como se verá
adiante, a uma recusa formal das origens, dos meios e dos fins do plebiscito
sobre a forma e sistema de governo previsto no artigo 2° das Disposições
Transitórias da Constituição.
Brazilian exceptionalism ?
É conhecido o sarcasmo de
Toynbee a respeito do Império do Brasil. Ao se referir a Francisco I da Áustria
ou II da Alemanha, ele escreve:
“A autometamorfose de
Francisco II, de "Imperador romano" em "Imperador Hereditário da
Áustria"[...] foi caricaturada em 12 de outubro de 1822 na proclamação de
dom Pedro I como Imperador do Brasil. Entretanto, esta reductio ad absurdum do
valor de um decalque político que Napoleão I tinha degradado não impediu
Napoleão III de assumi-lo [mais tarde]”[3].
Toynbee achava que, por causa
do pastiche encenado na sua origem, os eventos políticos do Império do Brasil
se tornavam caricaturais, perdendo toda significação própria. A frase é
emblemática da corrente interpretativa — cujos seguidores estrangeiros e
nacionais estão presentes nas diferentes disciplinas das ciências humanas — que
desconsidera a preeminência da história política nacional sobre as análises
contratualistas e formalistas. Próximos dessa última escola, os
parlamentaristas têm como argumento mais recorrente, se não mais convincente, a
impropriedade da mimesis institucional operada em nossas plagas: o
presidencialismo só deu certo nos Estados Unidos, ao passo que a esmagadora
maioria das democracias é parlamentarista. Nosso atual sistema de governo seria
uma reductio ad absurdum de um sistema original, impossível de ser transposto
da sociedade que lhe deu origem, enquanto o parlamentarismo, vista sua
generalidade histórica, estaria habilitado a aprumar, definitivamente, o
edifício político nacional.
Essa interpretação cabocla do
"American exceptionalism"[4] segundo a qual o presidencialismo só emplaca nos
Estados Unidos faz, numa certa medida, tábua rasa da política brasileira
contemporânea e, numa "redução à lógica", aposta todas as suas fichas
na excelência do novo sistema de governo proposto. De resto, no dia 13 de maio
de 1991 o Movimento Nacional Parlamentarista lançava na praça da Sé um slogan
que não fazia por menos e pretendia fincar ali mesmo, naquela data, o marco
zero da história política nacional: "Parlamentarismo — A Nova
Independência do Brasil!".
Ora, desde Sílvio Romero
quatro gerações de pensadores nos ensinam a recusar o bacharelismo para
escrutar os fundamentos sociológicos da Lei. Desse ponto de vista, não é
possível discutir a questão do plebiscito, das formas e dos sistemas de
governo, sem proceder a uma breve leitura da história recente de nosso país.
Paralelamente ao intenso movimento de urbanização das últimas décadas, massas
crescentes de brasileiros foram incorporadas ao processo eleitoral. Em 1950 a
proporção de eleitores inscritos entre os indivíduos maiores de vinte anos era
de 37%, em 1960 essa taxa subiu para 38%, mas em 1970 ela saltou para 51%, foi
para 59% em 1974, 66% em 1978 e chegou a 97% em 1988, ano da entrada em vigor
da Constituição. Decerto, o aumento de eleitores nas décadas de 1970 e 1980 nem
sempre foi estimulado pelo desejo de ir às urnas, aliás fraudadas pela
ditadura. Até o recadastramento eleitoral de 1986, o título de eleitor valia
como documento de identidade e, como tal, era exigido em diferentes trâmites da
administração pública. Ao lado da queda das taxas de analfabetismo, o alcance
do Funrural e a extensão das leis previdenciárias ao campo teve sua parte de
contribuição no crescimento do corpo eleitoral. Em contraste com esse tipo de
"cidadania compulsória" sucedeu, na segunda metade da década de 1980,
um fenômeno de cidadania deliberadamente reivindicada, de "demanda de
cidadania". De fato, a partir da lei de 1º de junho de 1985, abolindo o
veto constitucional ao voto dos analfabetos, uma porcentagem importante de
iletrados adultos, não sujeitos à obrigatoriedade do voto, requereram seu
título de eleitor sobretudo para ir às urnas, pois o título não mais era
considerado documento de identidade. Pouco se sabe desse novo contingente de
eleitores analfabetos e das fortes motivações que os levaram ao exercício
efetivo da cidadania.
Ao fim e ao cabo, observa-se
que nos últimos vinte anos o eleitorado brasileiro praticamente dobrou em
números relativos, aglutinando camadas rurais e urbanas submetidas a duras
condições sociais. Simultaneamente, a ditadura gerou uma horda de políticos
híbridos — biônicos depois ingurgitados pelo corpo eleitoral, como Paulo
Maluf—, impôs truculências eleitorais e partidárias, enquanto a Constituinte
democrática, por sua vez, criou novos estados, atribuiu novos poderes ao
Congresso, deu início ao sistema de dois turnos. Tal combinação de fatores
endógenos e exógenos ao contexto político gerou turbulências partidárias e
eleitorais que perturbariam, de todo modo, qualquer sistema de governo que
vigorasse no país.
Quais foram, portanto, os
efeitos dessas alterações no cenário político nacional? Sem pretender pintar o
presidencialismo de verde-amarelo e dar azo a uma forma de "Brazilian
exceptionalism", é possível rastrear nos eventos das últimas décadas o
desenvolvimento de uma dinâmica presidencialista que ajudou a derrubar a
ditadura, abrindo espaço para o país real se transformar, cada vez mais, no
país legal.
O voto presidencialista na
transição democrática
A partir da influência recente
da sociologia norte-americana, de estatísticas eleitorais mais precisas, de
sondagens sequenciais de opinião, e de referências conceituais enriquecidas
pelos enfoques comparativos com os países latino-americanos, uma série de
estudos sobre o período ditatorial renovou a ciência política brasileira. Um
dos fatos mais bem estabelecidos por essa bibliografia é a continuidade e a
consistência do voto oposicionista nas eleições nacionais da década de 1970.
Constatou-se em 1970 que 5 milhões de novos eleitores haviam votado — 30% a
mais que o total verificado em 1966 —, configurando o maior aumento relativo do
corpo eleitoral entre dois escrutínios na história do país. Mas os partidos se
beneficiavam desigualmente desse fluxo de votos. Com relação a 1966, a Arena
recolhia 2 milhões de votos suplementares no Senado, ao passo que o MDB só
captava outros 500 mil sufrágios. Mais relevante ainda foi o suplemento de 2,5
milhões de votos brancos e nulos, que faziam com que os números absolutos
registrados neste item em 1966 saltassem para perto do dobro em 1970. Afora a
anulação involuntária do voto, causada pela desinformação, a massa de sufrágios
nulos e brancos revelava a extensão do "voto de desconfiança" lançado
à ditadura, num momento em que o MDB ainda não se caracterizava como um partido
oposicionista[5].
Caídos no ralo dos votos nulos
e brancos em 1970, quando o corpo eleitoral passava a congregar mais da metade
da população adulta, os riachos formados pelo voto oposicionista viraram,
quatro anos depois, o rio caudaloso que fez renascer o MDB. A vitória
emedebista de novembro de 1974 teve um significado claro: a oposição vencia de
lavada as eleições majoritárias para o Senado, cujo peso político determinava a
orientação geral do escrutínio. Com dezesseis senadores eleitos no Centro e no
Sul do país, o MDB recolhia 50% dos votos úteis, enquanto a porcentagem de
votos nulos e brancos descia para 15,1%, a mais baixa taxa notada durante o
período do bipartidarismo. Por seu lado, a Arena elegia apenas seis senadores e
captava 34,7% dos votos. Embora fosse vencedora, e com muito chão, na Câmara,
onde tinha 204 deputados contra 160 do MDB, e estivesse ainda bem na frente da
oposição na soma dos sufrágios para as assembleias estaduais, a Arena — e o
governo militar — não conseguiu abafar o enorme revés criado pela derrota no
Senado. Daí para frente, a institucionalização do regime começou a fazer água e
as eleições de 1978 fixaram o comportamento eleitoral antiautoritário durante o
bipartidarismo.
Uma correlação estatística
elaborada por Vilmar Faria e confirmada por Lamounier mostra o perfil desse
comportamento: o voto de oposição era mais forte nas cidades de mais de 30 mil
habitantes e nos candidatos disputando o posto mais elevado[6]6. Ou seja, era na
eleição ao Senado — o mais alto escrutínio majoritário autorizado pelo regime —
que se corporificava a polarização política e a recusa do autoritarismo. O
senador ocupava o espaço do prefeito, do governador, do presidente que não
podia ser eleito pelo voto direto. Assim, o "voto plebiscitário"
resultante, r da implantação do bipartidarismo e da supressão das eleições
diretas é, na sua essência, um voto presidencialista. [7]
Contribuindo para integrar
milhões de novos eleitores ao processo político nacional, o voto
presidencialista sucessivamente embutido nas eleições senatoriais, e em 1982 na
eleição dos governadores, varreu as manobras de institucionalização do regime.
Nesse sentido, a campanha das "Diretas-já" — suscitando as maiores
manifestações democráticas de massa jamais realizadas na América Latina —,
galvanizada em 1984 pelo gênio político de Ulysses Guimarães, traduz, numa
esfera social mais ampla, a inclinação presidencialista que os eleitores
vinham, desde 1974, cravando com nitidez e constância nas urnas. De qualquer
ângulo que se enfocarem os eventos, de todo modo que se ponderar sobre os
fatos, do jeito que se alinharem as estatísticas eleitorais, não há como evitar
a constatação: foi graças a uma dinâmica presidencialista que o regime militar
foi acuado, batido e, por fim, derrubado.
Até onde a vista alcança, não
aparece nesse terreno histórico nenhum ponto substantivo de apoio a uma
eventual "dinâmica parlamentarista", que se contraponha ao processo
descrito acima. Ou bem a interpretação parlamentarista apresenta uma versão
diferente dos fatos ocorridos entre 1970 e 1985, ou bem, na sua visão
apocalíptica dos males do presidencialismo, ela se resigna a passar ao largo
dos eventos que marcaram nossa transição democrática.
Um milhão e meio de
presidenciáveis
A dinâmica presidencialista é,
na realidade, ativada por dois movimentos convergentes: o voto presidencialista
e, na esteira dele, o padrão de carreira política que leva milhares de
candidatos a seguirem uma estratégia calcada na matriz presidencialista. Um
milhão e 600 mil candidatos concorreram, segundo os registros do TSE, aos
pleitos realizados nos quase 5 mil municípios brasileiros nas eleições de
outubro-novembro do ano passado. Dezenas de escrutínios sucessivos e gerações
seguidas de eleitos esculpiram os degraus da escalada de postos eleitorais
projetada diante de cada um desses candidatos: vereador, prefeito, deputado
estadual, deputado federal, governador, senador. Toda uma cadeia de
solidariedades e de mecanismos de troca, incluindo o financiamento das
campanhas legislativas através das "dobradinhas" montadas com os
candidatos aos cargos executivos, intervém na reprodução deste sistema.
Restrita ao topo, a corrida presidencial modula entretanto toda a escalada.
Nesse sentido, para além dos quatro ou cinco governadores e ex-governadores
hoje em dia mais em vista, o atual tabuleiro político brasileiro comporta um
milhão e meio de presidenciáveis.
Obviamente, esse modelo
idealizado de carreira política foi sempre perturbado pelo descompasso entre os
subsistemas proporcional e majoritário. É sabido o efeito individualizador
gerado entre os candidatos ao Legislativo pela lista aberta de representação
proporcional, a multiplicidade de candidaturas e a inexistência de fidelidade
partidária[8]. Contudo, como
Antônio Lavareda demonstrou em seu importante livro, as vibrações diruptivas
embutidas nos escrutínios legislativos proporcionais já estavam sendo reduzidas
e disciplinadas — desde antes do golpe de 1964 — pela estruturação partidária
irradiada do subsistema majoritário, sobretudo através das eleições
governatoriais[9]. Desde essa época
os governadores ajudavam a amarrar as bancadas estaduais às clivagens nacionais
e abriam a via à "nacionalização" do sistema partidário.
Essa nova versão da
"política dos governadores" que, ao invés de estadualizar o governo
federal, como a anterior, desencrava e nacionaliza os lances do embate
estadual, foi retomada nos últimos dez anos, após a atrofia do interregno
formado pelos governadores biônicos. Assim, a eleição dos governadores em 1982
em face de um presidente militar desmoralizado, as circunstâncias em que Sarney
assumiu a presidência em 1985, o impeachment de Fernando Collor e a posse do
vice-presidente em 1992 transformaram, virtualmente, os governadores mais
importantes do país no núcleo de um quarto poder republicano.
Não parece excessivo esperar
que o enraizamento do sistema de dois turnos, a ser aplicado pela segunda vez
nos estados em 1994, quando eleitores, candidatos e partidos estarão mais a par
das regras do jogo, dará bases duráveis à "nova política dos governadores",
ajudando a solucionar a instabilidade crônica das alianças do Executivo federal[10]. Tudo indica, de
fato, que na esfera intermediária dos governos estaduais, mais ainda que no
nível municipal ou presidencial, os dois turnos poderão agir como instrumento
disciplinador das coalizões de governo e das alianças político-partidárias[11].
Por seu lado, as conexões
entre os subsistemas proporcional e majoritário ganharão maior capilaridade na
medida em que se confirmar no Brasil o postulado geral da "theory of
progressive ambition"[12]. Observou-se, com
efeito, nos Estados Unidos, a tendência histórica que levava os ex-governadores
a se candidatarem ao Senado federal. É provável que o processo se consolide no
Brasil — onde existem três vagas por unidade da federação e surgiram novos
estados —, atraindo no empuxo ex-presidentes catapultados de bases cavadas em
estados periféricos, como foi o caso de Juscelino, eleito senador por Goiás em
1962, e o de Sarney, escolhido pelas urnas do Amapá em 1990.
Caso a tendência ao reforço do
Senado — iniciada em 1974 — se confirme, os governadores tenderão a apoiar, ao
lado dos próprios senadores, o aumento das prerrogativas senatoriais. Desse
ponto de vista, é interessante prestar atenção à atual disputa entre a Câmara e
o Senado a respeito da presidência do Congresso durante a próxima revisão
constitucional.
Nesta altura já ficou claro
que a dinâmica presidencialista — expressa através do voto registrado nas
últimas décadas, do padrão de carreira política, do federalismo, da
preeminência do Senado — planta enormes embaraços no caminho das mudanças
propostas pelos parlamentaristas. Trata-se de embaraços estruturais,
incorporados à prática política de longo prazo, distintos portanto das
precondições necessárias ao funcionamento do parlamentarismo, tais como a
correção da sub-representação de alguns estados na Câmara, o voto distrital, a
existência de uma burocracia estável. Obviamente, a efetivação dessas reformas
é também grandemente necessária para o aperfeiçoamento do presidencialismo
brasileiro.
A atualidade brasileira e os
três sistemas de governo
Um estudo sobre as diversas
denominações atribuídas ao sistema federativo detectou nada menos que 326
metáforas e modelos de federalismo na bibliografia anglo-saxônica[13]. Sem ir tão longe,
seria possível alinhar muitos tipos de parlamentarismo pelo mundo afora. Há
entretanto uma distinção, ressaltada pelos tratadistas, que se sobrepõe a todas
as outras: o modo de eleição do presidente da República. A eleição indireta —
pelo Parlamento ou por um colégio eleitoral específico — faculta o
estabelecimento, na Constituição e na prática política, de uma radical
separação entre os poderes do chefe de Estado e do chefe de governo. Ao
contrário, se o presidente é eleito pelo voto universal e direto, as funções de
chefe de Estado e de governo podem eventualmente se embrulhar. Partindo da
diarquia que se estabelece no Executivo neste último caso, Maurice Duverger
define esses regimes híbridos como "semipresidencialistas", e não
"neoparlamentares", como dizia o senador Fogaça na Constituinte, ou
"semiparlamentaristas", como os chamava Ulysses Guimarães.
Segundo Duverger, o regime
parlamentar é por essência "monista", repousa na expressão de uma
única vontade popular: a que resulta das eleições legislativas e se corporifica
no Parlamento. Em contraste, os regimes presidenciais são dualistas, pois a
vontade popular se cristaliza por duas vias: as eleições legislativas e a
eleição presidencial. Em graus diversos, tal dualidade também caracteriza os
regimes híbridos apontados acima, que por isso devem ser chamados de
semipresidenciais. Resultado de uma reflexão sobre a essência do poder, e não
do malabarismo de prefixos ou de sufixos, o ponto de vista de Duverger parece
irrecusável[14]14. Decorre daí que
o parlamentarismo, com um presidente eleito indiretamente ou com um monarca na
chefia do Estado, se distingue tanto do semipresidencialismo quanto do
presidencialismo propriamente dito. Donde, os sistemas de governo
implicitamente propostos no plebiscito — excluído o absurdo de uma monarquia
não parlamentarista ou, mais grotesco ainda, presidencialista —, são na
realidade três: o parlamentarismo, o semipresidencialismo e o presidencialismo.
Antes de examinar esses sistemas à luz do que ficou dito sobre nossa história
recente, convém conferir os rumos atuais da discussão sobre o plebiscito.
Dois silêncios, duas omissões
políticas, são particularmente intrigantes e, a termo, inquietantes, no debate.
O primeiro se refere à ausência de críticas, da parte da Frente
Parlamentarista, à mistificação monárquica. Foram os parlamentaristas que deram
a esse movimento de cariz folclórico — pois está investido de uma representação
sem representatividade — o privilégio abusivo de se apresentar como alternativa
à República. Cabe a eles, para além do cálculo tático, serem os primeiros a
combater essa proposta politicamente irresponsável. O segundo silêncio é mais grave. Como, de fato, justificar o
acordo dos parlamentaristas clássicos, doutrinariamente avessos à eleição
direta do presidente, com os semipresidencialistas, em torno da Emenda Popular
Parlamentarista (EPP) assinada por duas centenas de deputados e senadores,
propondo a eleição direta do presidente em um só turno? Em quem acreditar, no
jurista Miguel Reale Jr., que considera a EPP "estritamente
parlamentarista", ou no ministro Paulo Brossard, que diz ser o
parlamentarismo "antinômico" com a eleição direta do presidente?
Seria um insulto à inteligência imaginar que a eleição direta em um só turno
tenha desarmado as prevenções teoricamente justificadas dos parlamentaristas
contra esta forma de escrutínio. De fato, o semipresidencialismo não é um
parlamentarismo incompleto é, isto sim, um sistema de governo distinto,
apartado do princípio da unicidade institucional da representação da vontade
popular.
Surge, portanto, uma hipótese inquietante .
Ao se aliarem aos semipresidencialistas, os parlamentaristas estariam — de
maneira deliberada ou não — supondo que as crises políticas geradas pelo
presidente diretamente eleito corroerão sua legitimidade, concorrendo, a médio
prazo, para a atrofia ou a abolição do cargo? Percebe-se desde logo os enormes
riscos, para o país inteiro, embutidos numa aposta dessa ordem.
O semipresidencialismo no Brasil
Na atual conjuntura
brasileira, em decorrência das lutas antiautoritárias das últimas décadas e do
processo político descrito acima, está excluído o abandono da eleição direta
para a Presidência da República. Sondagens de opinião têm reiteradamente
mostrado a esmagadora adesão do eleitorado ao voto direto. Uma das últimas
consultas, realizada no Rio de Janeiro e em São Paulo durante o mês de janeiro
de 1993, revelou que 84,5% dos habitantes da primeira cidade e 82,2% dos da
segunda manifestam sua preferência por essa forma de escolha do chefe de Estado[15]15. Diante desse
fato maciço e incontornável a EPP, como ficou dito, especifica em seu artigo
2°: "O chefe de Estado é o presidente da República a ser eleito
diretamente em um único turno". Deixando-se de lado um caso de conclusão
dramática, o da República de Weimar entre 1919 e 1933, e os exemplos ainda em
vias de consolidação, como os do Sri-Lanka, da Rússia, da Polônia e da
República Popular do Congo, há seis casos paradigmáticos de
semipresidencialismo: a Finlândia (desde 1919), a Áustria (desde 1929), a
Irlanda (desde 1937), a Islândia (desde 1945), a França (desde 1962) e Portugal
(desde 1976).
De cara, uma constatação se
impõe: todos esses países possuíam uma tradição ou instituições
parlamentaristas bem assentadas, quando resolveram introduzir a eleição direta
para a Presidência da República. Naturalmente, se tratou de uma operação
constitucional bastante mais simples do que a pretendida no Brasil. Num regime
arraigadamente presidencialista se introduzirá uma proporção não especificada
de parlamentarismo. Quais serão as consequências dessa eventual reforma ?
Duas hipóteses poderão se
apresentar: um presidente e um primeiro-ministro apoiados em alianças
partidárias distintas, ou um presidente e um primeiro-ministro filiados à mesma
coalizão político-partidária.
No primeiro caso, tendo em
vista o que ficou dito nas páginas precedentes, haverá sempre um movimento
"restauracionista", em favor do presidente e contra o
primeiro-ministro. É a chamada "doutrina Ryff", pregada pelo então
secretário de Imprensa de Goulart durante o período parlamentarista (1961-3): o
presidente junta-se à oposição ao governo do primeiro-ministro e reivindica a
plenitude do poder executivo federal.
Nos países
semipresidencialistas citados acima, esse viés presidencialista foi geralmente
travado pela evolução política. Em Portugal o processo seguiu o declínio da
influência dos militares, a revisão constitucional de 1982 diminuindo os
poderes presidenciais, e a eleição de Mário Soares à Presidência. Na França a
situação foi sempre mais instável, em virtude do comportamento cesarista de
dois presidentes saídos da liderança da Resistência ao nazi-fascismo: De Gaulle
e François Mitterrand. Porém, nesses dois países não existe nenhuma
"dinâmica presidencialista" extensa, na medida em que a produção de
"presidenciáveis" só começa na etapa final da escalada política,
quando se alinham as candidaturas à Presidência dos líderes parlamentares que
já exerceram o cargo de primeiro-ministro. No Brasil, ao contrário, a máquina
política montada em torno do escrutínio majoritário e o comportamento eleitoral
asseguram — nos municípios, nos governos estaduais e na cúpula do poder — a
reprodução contínua de presidenciáveis e do modelo presidencialista. O vento
soprará sempre para o mesmo lado, haverá sempre uma deriva presidencialista no
sistema híbrido. Facilmente o presidente poderá fazer valer que recebeu milhões
de votos em todo o território nacional, em contraposição a um primeiro-ministro
saído de São Paulo — ou do Piauí —, e escolhido apenas por algumas dezenas de
parlamentares. Nesse sentido, o compromisso capenga inscrito na EPP, a eleição
do presidente em um só turno, não muda nada. Como ensina o truísmo formulado pelo
velho Nereu Ramos na presidência do Senado nos anos 50: "maioria é
maioria!".
Na segunda hipótese, no caso
de o presidente e o primeiro-ministro pertencerem à mesma corrente política, a
divisão constitucional entre chefe de governo e chefe de Estado irá para o
espaço. Se erguerá então em volta das duas cabeças do Executivo federal uma
carapaça mil vezes mais dura do que o presidencialismo atualmente em vigor, a
exemplo do que acontece hoje nas margens do Sena.
Um homem do mundo, um
democrata, será presidencialista nos Estudos Unidos, semipresidencialista na
França, parlamentarista monárquico na Inglaterra, parlamentarista republicano
na Itália. Não proferirá condenações apocalípticas sobre uns sistemas de
governo e elogios definitivos sobre outros. No Brasil, o regime
presidencialista vigente tem dado provas de regeneração. Desde a revolução
democrática desencadeada pela vitória dos senadores do MDB nas eleições de
novembro de 1974, milhões de novos eleitores foram incorporados à cidadania, se
manifestando sempre — nas ruas e nas urnas — para estabelecer a soberania
popular sobre o Executivo federal consubstanciado no mandato presidencial. Esse
processo configura uma prática democrática assimilada pela opinião pública,
pelo eleitorado e os eleitos nacionais. Uma interrogação abria este texto: a
história contemporânea brasileira compreende uma tradição política apta a
fundar uma cultura democrática? Os eventos das últimas décadas parecem
demonstrar que sim. No limiar deste século conturbado, não é pouca coisa.
NOTAS
[1] Agradeço aos colegas do Grupo de Estudos
Políticos do Cebrap a ajuda que me prestaram na elaboração deste texto
[2] Na sua obra clássica publicada em 1956, Prefácio à teoria democrática, Robert A. Dahl alinhava entre os
Estados-nações democráticos os países dos ex-Domínios Britânicos, "com
exceção possivelmente da África do Sul" (o grifo é meu) Dahl, R.A., Prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p.
76. Quatro décadas mais tarde, quando está claro que a África do Sul não é,
absolutamente, nem um Estado-nação, nem uma democracia, nem mesmo uma
poliarquia não igualitária, já se pode, num raciocínio análogo, extrair
"possivelmente" o Japão das democracias efetivas para incluí-lo entre
os países às voltas com os problemas da consolidação democrática: o PLD,
espécie de Centrão nipônico, ganha sistematicamente as eleições nacionais. Que
democracia é essa, na qual a oposição, nesse longo lapso de tempo, não se
tornou politicamente viável? Um artigo recente da revista empresarial japonesa
Tokyo Business afirma: "O novo estereótipo do Japão é algo mais próximo de
uma 'banana republic' — um governo corrupto depois do outro chegando ao poder,
não através de eleições populares, mas de conchavos de porão feitos entre
políticos e gângsteres, com muito dinheiro para azeitar o sistema e o apoio
tácito dos Estados Unidos". "The new revisionism: Japan as Japan —
basher", Tokyo Business, jan. /fev .
1993
[3] . Ver o comentário pertinente de Pedro Octávio
Carneiro da Cunha sobre esta reflexão em "A fundação de um império
liberal". In: Holanda, Sérgio Buarque de . História Geral da Civilização
Brasileira, tomo II, 1º volume, p. 238, nota 1.
[4] . O "American exceptionalism" resume a
tradição historiográfica norte-americana — inspirada aliás em grandes
pensadores não americanos como Hegel e Tocqueville — que dá ênfase à
excepcionalidade, à especificidade da história dos Estados Unidos, tornando-a irredutível
a comparações, seja com a Europa, no tocante ao sistema de governo, à evolução
política ou cultural, seja com o Caribe ou o Brasil, quando o assunto em pauta
é o escravismo. Resultou daí uma historiografia paroquial, agora criticada
pelos defensores de uma maior articulação da história americana à história
mundial no âmbito de uma "New Transnational History". Sobre o assunto
leia-se Tyrrel, Ian. "American exceptionalism in a age of international history" e a
resposta de Michael McGerr, "The price of the
'New Transnational History'", American
Historical Review, 96, nº 4, 1991.
[5] . A análise que se segue está baseada nos
estudos levados a efeito no Cebrap e publicados em dois livros cuja leitura é
obrigatória para o entendimento da evolução política do país: Cardoso, Fernando
Henrique e Bolivar Lamounier (orgs.). Os partidos e as eleições no Brasil. Rio de Janeiro, 1975; e Lamounier, B. (org .). O voto de desconfiança. São
Paulo, 1980. Uma versão da síntese aqui apresentada foi por mim publicada no
artigo "L'impératif eléctoral au Brésil 1964-1981". Problèmes d'Amérique Latine, La Documentation Française, Paris, n° 61, setembro 1981, pp. 42-76.
[6] . Cf. Faria, Vilmar. "As eleições de 1974
no estado de São Paulo: uma análise das variações inter-regionais". In:
Cardoso, F.H. Lamounier,
B. (org .). Os partidos ..., op. cit .,
pp. 205-38; Lamounier, B. "O voto em São Paulo 1970-78". In: idem, O voto de desconfiança, op. cit .,
p.21.
[7] . “Coluna do Castello”, Jornal do Brasil, 29/11/1974.
Cunhada pelo grande jornalista Carlos Castello Branco, a expressão “voto
plebiscitário”, definindo os resultados de novembro de 1974 foi retomada mais
tarde por Lamounier, Lamounier, B. "O voto em São Paulo 1970-1978".
In: idem, (org.), O voto de desconfiança, op. cit .,
pp. 15-80, p. 17.
[8] . Mainwaring Scott. "Políticos, partidos e
sistemas eleitorais — O Brasil numa perspectiva comparativa". Novos Estudos, nº 29,
março de 1991, pp. 34 -58.
[9] . Lavareda ,
Antônio. A Democracia nas
urnas— O processo partidário-eleitoral brasileiro. Rio de Janeiro:
IUPERJ/Rio Fundo Editora, 1991.
[12] . Um reexame da "theory of progressive ambition" demonstrou que os governadores americanos agora concorrem me-nos para as vagas senatoriais na medida em que foram levantados, dos anos 1950 para cá, os dispositivos das constituições estaduais que impediam suas reeleições. Diante da oportunidade de renovar seus mandatos na chefia do Executivo estadual — onde exercem a efetividade do poder —, os governadores se candidatam menos frequentemente ao Senado. Como o processo eleitoral de ascensão política foi travado pela ditadura e a reeleição dos governadores não é permitida no Brasil, estou supondo que o postulado inicial da "progressive ambition" — a inclinação dos governadores a concorrerem ao Senado no final de seu mandato — terá ainda maior efetividade entre nós. Cf.
[13] . Stewart, William H. "Metaphors, models and the development of
[14] .
[15] . O Globo, pesquisa Infoglobo, 24.1.1993.
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