terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Punir sem encarcerar

Reproduzo a parte da resenha do livro Elite da Tropa que se refere diretamente à foto acima. O texto completo da resenha está na revista Piauí do mês de fevereiro.

“O livro aborda várias vezes o racismo, um problema que envolve a polícia, os bandidos, a sociedade inteira. Sabe-se que um relatório da ONU divulgado em outubro de 2006, indica que os negros representam 70% dos jovens de 15 a 18 anos assassinados no Brasil. Não se trata de um acaso estatístico. Tenho para mim que o racismo pauta, há muito tempo, as práticas de segurança pública no Brasil.
Durante três séculos, nosso país esteve estruturado em torno do maior sistema escravista das Américas. Depois da independência, no Brasil, como no sul dos Estados Unidos, o escravismo passou a ser consubstancial ao State building, à organização das instituições nacionais. Houve, assim, uma modernização do escravismo, para colocá-lo em sintonia com as novas doutrinas ocidentais que regulavam as liberdades públicas. Entre as múltiplas contradições engendradas por essa situação, uma dizia respeito ao Código Penal: como punir o escravo delinqüente sem encarcerá-lo, sem privar o seu proprietário do usufruto de seu trabalho?
Para resolver o problema, o quadro legal foi definido em dois tempos. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, em seu artigo 179, a extinção das punições físicas constantes nas aplicações de pena do Antigo Regime português. “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”, e também “as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”. Conforme os princípios do Iluminismo, ficavam assim preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres.
Numa segunda etapa, o Código Criminal de 1830 tratou da condição dos escravos, os quais representavam uma forte proporção de habitantes do Império. No seu artigo 60, o Código revivia a pena de tortura, a punição sem encarceramento. “Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar, o número de açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de cinqüenta”.
Longe de restringir-se ao campo, a escravidão assumia um papel relevante nas cidades brasileiras. Contando, em 1850, 110 mil escravos entre seus 266 mil habitantes, o Rio de Janeiro, capital do Império, reunia a maior concentração urbana de escravos da época moderna. Nesse quadro histórico, a questão da segurança pública e da criminalidade assumia um viés específico.
A contrapelo do postulado foucaultiano sobre a prisão (lugar de fechamento de marginais ou de penas moduladas de privação de liberdade), ensinado acriticamente nos três turnos das universidades brasileiras, o Brasil oitocentista abole a prisão à sua maneira: mantendo a pena de tortura para o escravos. De maneira muito mais eficaz que a prisão, o terror e a tortura pública servem para intimidar os escravos.
Oficializada até o final do Império, essa prática punitiva estendeu-se às camadas desfavorecidas, aos negros em particular e aos pobres em geral. Junto com a privatização da Justiça efetuada no campo pelos fazendeiros, esses procedimentos travaram o advento de uma política de segurança pública fundada nos princípios da liberdade individual e da cidadania.
Do final da escravidão, à foto de Luiz Mortier, publicada n’O Jornal do Brasil em 1982 e intitulada “Todos Negros” , e até o relatório da ONU de outubro de 2006 e Elite da Tropa, desenha-se a linha vermelha da continuidade histórica”.

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