Reproduzo abaixo um artigo que publiquei na Folha a respeito do bicentenário da chegada da Corte
Folha de S. Paulo, 14 de dezembro de 2008
A terceira margem do Rio
A terceira margem do Rio
Luiz Felipe de Alencastro
No termo do ano do bicentenário, talvez ainda haja algo para ser dito sobre a chegada da corte. Eventos variados apresentaram as mudanças introduzidas em 1808. Apontou-se o desenvolvimento comercial, a modernização social e institucional, o transplante da burocracia européia que forjou o aparelho estatal da nação, a não-fragmentação da América portuguesa e a singularidade monárquica brasileira no contexto americano. Some-se a isso certa nostalgia da época em que o Rio de Janeiro era a capital política, econômica e cultural do país.
Com exceção deste último aspecto, os temas não foram muito distintos dos que haviam sido destacados cem anos atrás. Como há um século, a comemoração da vinda da corte serviu para apregoar a preeminência do Brasil na história da expansão européia e a excepcionalidade do destino brasileiro. Pouco se falou a respeito da ofensiva inglesa no Atlântico Sul, ilustrada pelos ataques de 1806 e 1807 a Buenos Aires, cujo comércio seria em seguida aberto à Inglaterra. Quase nada foi notado sobre o arrocho de Londres para que a corte viesse para o Brasil comboiada -subjugada pelos canhões da Royal Navy.
No entanto -respondendo à chancelaria britânica, que insistia, ainda em 1838, na generosidade da ajuda naval inglesa em 1808-, Sá da Bandeira, primeiro-ministro português, argumentou que a corte podia muito bem ter se estabelecido na ilha da Madeira, mais próxima de Lisboa e inacessível à Marinha de Guerra francesa (destruída em 1805 na batalha de Trafalgar). Para ele, a vinda da corte para o Rio de Janeiro fora imposta pelos ingleses, sobretudo interessados em ter livre acesso ao mercado da América portuguesa. Nessa perspectiva, o fator decisivo do translado da corte é a pressão inglesa para forçar a abertura do comércio do Brasil. Assim, o plano de mudança da sede do reino, cogitado desde sempre por uma elite portuguesa ansiosa por vir morar em Pindorama -eixo central da historiografia e do comemoracionismo-, se torna aleatório.
Enviesada por uma interpretação territorial da história do Brasil que desconsidera a unidade do Atlântico Sul, boa parte das análises não atinou para o outro evento marcante de 1808: o engolfamento brasileiro nos portos africanos abandonados pelos negreiros da Inglaterra e dos EUA. De fato, concretizou-se nesse mesmo ano a proibição do tráfico de africanos ordenada aos comerciantes dos dois países por seus respectivos governos. Atenta à mudança, a Mesa de Inspeção -órgão regulador do comércio do Rio- anunciou, em agosto de 1808, as grandes oportunidades abertas ao Brasil, "pela falta de concorrentes estrangeiros na costa [da África], sendo a todos vedado este comércio [de escravos]". Na seqüência, as trocas diretas com a Inglaterra estimulam as exportações brasileiras para a Europa, avolumando a importação de africanos. Campeão absoluto do comércio negreiro, já considerado pirataria no século 19, o Brasil captou 1,5 milhão de africanos entre 1808 e 1850. Desses, 760 mil foram ilegalmente introduzidos no país, sobretudo entre 1831 e 1850.
Conforme a legislação brasileira de 1831, todos esses indivíduos eram considerados livres ao pisarem nas praias do império. Sua redução ao cativeiro constituía crime de seqüestro. Porém a esmagadora maioria deles -e de seus filhos e netos- foi mantida na escravidão com a tolerância das autoridades e o conluio da sociedade. Desse modo, as duas últimas gerações de escravos simplesmente não eram escravos. Trata-se de indivíduos plenamente livres e escravizados ao arrepio da lei.
Nesse contexto, a transferência da corte ofereceu duas condições importantes para a sobrevivência do sistema negreiro. Um governo português -e depois brasileiro- obstinado na continuidade do escravismo e um aparato diplomático competente, apto a neutralizar as ofensivas diplomática e naval inglesa, protelando o tráfico de africanos até 1850. A visão irênica da chegada da corte propala a ocidentalização do Brasil pela dinastia dos Bragança que reinava nas duas margens do Atlântico. Mas houve também uma terceira margem no rio-oceano, formando a cadeia de trocas que conectou a barbárie ao progresso econômico: quanto mais cresceu a economia brasileira, mais gente foi arrancada da África e escravizada no Brasil.
O poeta alemão Heinrich Heine escrevia em 1833: "Cada época é uma esfinge que mergulha no abismo logo que o seu problema é decifrado". Terá o Brasil decifrado as conseqüências do problema gerado em 1808?
Com exceção deste último aspecto, os temas não foram muito distintos dos que haviam sido destacados cem anos atrás. Como há um século, a comemoração da vinda da corte serviu para apregoar a preeminência do Brasil na história da expansão européia e a excepcionalidade do destino brasileiro. Pouco se falou a respeito da ofensiva inglesa no Atlântico Sul, ilustrada pelos ataques de 1806 e 1807 a Buenos Aires, cujo comércio seria em seguida aberto à Inglaterra. Quase nada foi notado sobre o arrocho de Londres para que a corte viesse para o Brasil comboiada -subjugada pelos canhões da Royal Navy.
No entanto -respondendo à chancelaria britânica, que insistia, ainda em 1838, na generosidade da ajuda naval inglesa em 1808-, Sá da Bandeira, primeiro-ministro português, argumentou que a corte podia muito bem ter se estabelecido na ilha da Madeira, mais próxima de Lisboa e inacessível à Marinha de Guerra francesa (destruída em 1805 na batalha de Trafalgar). Para ele, a vinda da corte para o Rio de Janeiro fora imposta pelos ingleses, sobretudo interessados em ter livre acesso ao mercado da América portuguesa. Nessa perspectiva, o fator decisivo do translado da corte é a pressão inglesa para forçar a abertura do comércio do Brasil. Assim, o plano de mudança da sede do reino, cogitado desde sempre por uma elite portuguesa ansiosa por vir morar em Pindorama -eixo central da historiografia e do comemoracionismo-, se torna aleatório.
Enviesada por uma interpretação territorial da história do Brasil que desconsidera a unidade do Atlântico Sul, boa parte das análises não atinou para o outro evento marcante de 1808: o engolfamento brasileiro nos portos africanos abandonados pelos negreiros da Inglaterra e dos EUA. De fato, concretizou-se nesse mesmo ano a proibição do tráfico de africanos ordenada aos comerciantes dos dois países por seus respectivos governos. Atenta à mudança, a Mesa de Inspeção -órgão regulador do comércio do Rio- anunciou, em agosto de 1808, as grandes oportunidades abertas ao Brasil, "pela falta de concorrentes estrangeiros na costa [da África], sendo a todos vedado este comércio [de escravos]". Na seqüência, as trocas diretas com a Inglaterra estimulam as exportações brasileiras para a Europa, avolumando a importação de africanos. Campeão absoluto do comércio negreiro, já considerado pirataria no século 19, o Brasil captou 1,5 milhão de africanos entre 1808 e 1850. Desses, 760 mil foram ilegalmente introduzidos no país, sobretudo entre 1831 e 1850.
Conforme a legislação brasileira de 1831, todos esses indivíduos eram considerados livres ao pisarem nas praias do império. Sua redução ao cativeiro constituía crime de seqüestro. Porém a esmagadora maioria deles -e de seus filhos e netos- foi mantida na escravidão com a tolerância das autoridades e o conluio da sociedade. Desse modo, as duas últimas gerações de escravos simplesmente não eram escravos. Trata-se de indivíduos plenamente livres e escravizados ao arrepio da lei.
Nesse contexto, a transferência da corte ofereceu duas condições importantes para a sobrevivência do sistema negreiro. Um governo português -e depois brasileiro- obstinado na continuidade do escravismo e um aparato diplomático competente, apto a neutralizar as ofensivas diplomática e naval inglesa, protelando o tráfico de africanos até 1850. A visão irênica da chegada da corte propala a ocidentalização do Brasil pela dinastia dos Bragança que reinava nas duas margens do Atlântico. Mas houve também uma terceira margem no rio-oceano, formando a cadeia de trocas que conectou a barbárie ao progresso econômico: quanto mais cresceu a economia brasileira, mais gente foi arrancada da África e escravizada no Brasil.
O poeta alemão Heinrich Heine escrevia em 1833: "Cada época é uma esfinge que mergulha no abismo logo que o seu problema é decifrado". Terá o Brasil decifrado as conseqüências do problema gerado em 1808?
8 comentários:
A Ilha da Madeira seria capaz de comportar toda a corte? Duvido...
A retirada da família real para o Brasil já era preconizada por Rodrigo de Sousa Coutinho desde 1803.
"se Portugal não tiver sorte nas armas, então “passasse a família Real para o Brasil”." -- Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda, História Orgânica e Política do Exército Português - Provas, volume XVII, Invasão de Junot em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, p. 113
Caro Anonimo
Obrigado por sue comentàrio.
A Madeira tinha cerca de 30.000 habitantes na época. O Rio talvez tivesse o dobro. Mas era um porto malafamado por causa das doenças tropicais e do contexto colonial. Sá da Bandeira -, que sabia mais do que nós sobre a Madeira e o Brasil daquela época -, achava que a Madeira era mais apropriada para a sede da Corte. Em todo o caso, o argumento dele nunca foi tomado em conta pela maioria esmagadora dos autores que escrevem que a Corte portuguesa não tinha alternativa senão vir para o Brasil. E Londres, sede de muitos governos exilados durante várias guerras européias, também não comportava a Corte portuguesa ?
Apenas para colaborar com a discussão, que acho, antes de tudo, é a intenção do professor, gostaria de lembrar alguns dados historicos :
Primeiro, do Tratado de capitulação da Madeira aos ingleses assinado em 26/12/1807. Mesmo se celebrado durante a fuga da Coroa, a ocupação da Madeira ja vinha sendo planejada pelos ingleses ha meses, preparativos esses que se intensificaram quando do ultimato francês para que Lisboa integrasse o bloqueio continental em outubro de 1807. Esse documento colocou formalmente a Madeira sob protetorado inglês, com graves consequências juridicas, como a restrição da soberania portuguesa. O artigo 1° rezava que « … a ilha da Madeira e suas dependências serão entregues aos comandantes das forças de sua majestade britânica para serem conservadas e governadas por sua dita majestade com os mesmo direitos, privilégios e jurisdições com que até agora os gozou a coroa de Portugal ». Essa “passagem” solene de poder indica que, além da importância estratégica da ilha (mesmo se considerarmos os resultados de Trafalgar), a dominação economica e a influência politica desse territorio português pelos ingleses ja vinha de ha muito tempo (um exemplo extremo desse fato foram as ocupações desse territorio promovidas por Londres entre 1801 e 1802). O protetorado durou até 1814. Se este tratado (e sobretudo a situação geo-politica e economica da ilha) reforça as teses de que a Coroa « não tinha escolha » ao vir para o Brasil, ao mesmo tempo, mostra que as escolhas de Portugal foram talhadas pelos ingleses. (Para saber mais : Paulo Miguel Rodrigues, A política e as questões militares na Madeira, o período das guerras napoleónicas, 1999).
Segundo, que a Madeira, em 1805, possuia 84.364 habitantes, ou seja, quase 1/3 maior que o Rio de Janeiro. (Para saber mais: Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses. Elucidário Madeirense. Vol III, 1978, p. 98)
Terceiro, que as condições climaticas e a riqueza circulante no Porto do Funchal eram notoriamente atrativos para a Coroa (pelo menos eram um diferencial perante os “atrativos” do “malafamado” porto do Rio (Para saber mais: Alberto Vieira. The Fortune of the Fortunates. The Islands and the Atlantic System. In: Veröff, Joachim Jungius-Ges. Wiss. Hamburg, 94, p. 199-248, 2002.)
Apenas mais alguns elementos para fomentar o debate.
Obrigada,
Nelly de Freitas
Nelly, obrigado pelas informações muito interessantes
quando falei dos 30.000 habitantes (cifra que tenho na cabeça mas não tenho a referência) me referia ao concelho de Funchal, comporado aos 60.000 do Rio de Janeiro, municipio da Corte. 2/5 dos hab eram escravos. isso também era o "contexto colonial"
Um trecho me chamou a atenção, professor: "Desse modo, as duas últimas gerações de escravos simplesmente não eram escravos. Trata-se de indivíduos plenamente livres e escravizados ao arrepio da lei". Chamou-me a atenção porque me fez pensar nas relações entre o direito e o conjunto de forças sociais. O direito, por não sancionar aquela relação, bastaria para tornar a escravização das duas últimas décadas menos, digamos, infame do que a dos séculos anteriores? O modo como foi encaminhada a questão da primeira lei antitráfico, fundamentalmente por pressões inglesas, apesar de ir além delas, não contribuiu para que as entradas de africanos nas décadas seguintes fosse vista apenas como mancha nos acordos com a Inglaterra, e não como crime de ordem moral?
João, indico para você o pequeno texto "A Tática do Deixa-Disso" (http://www.interney.net/blogs/lll/2009/01/19/a_tatica_do_deixa_disso/). Não responde exatamente as suas questões, mas mostra bem como as coisas funcionavam (e, em alguns casos, ainda funcionam) no Brasil.
Caro Ulisses, agradeço a indicação.
Mas devo ressaltar que havia, sim, quem defendesse a escravidão no Império, inclusive abertamente no Senado e na Câmara. Não se fazia uma defesa abstrata e com base moral, mas em vista das necessidades do país e das qualidades que o tráfico de africanos havia possibilitado ao país. Exemplo disso é a atuação de Bernardo Pereira de Vasconcelos, como tem mostrado, em pesquisa, Tâmis Parrón e Rafael Marquese, da USP.
Abraço.
Prezado Prof. Luiz Felipe,
Tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente durante seminário em Fiesole em 2008 quando do bota fora do Diogo Curto. Como na ocasião ainda estou me detendo sobre a questão do aumento abrupto na importação de escravos pelo Rio já no ano de 1809. Em uma postagem em seu blog você menciona o término do tráfico inglês com uma causa imediata. Seja como for, a questão que se coloca é como foram levantados tão rapidamente os recursos dobrar o número de expedições a Angola (23 em 08, 30 em 09 e 42 em 10)? A partir do de 1812, com o Banco do Brasil, a galera local passou a contar com uma impressora de dinheiro bastante utilizada. Mas isso ainda não explica 1810.
Na ocasião não tinha lido seu livro, O Trato dos Viventes, deficiência que estou sanando no momento. Você dá um baile em qualquer autor gringo que tenho lido (Alden, Adelman, etc.) e acho no mesmo pé que a Leonor Freire Costa no livro sobre as frotas de açúcar. Fico imaginando como se faz para escrever uma coisa como aquela.
Abraços,
Ricardo (rfp@usp.br)
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