Numa recente viagem ao Brasil, fiquei no Rio de Janeiro. E dei-me conta que Copacabana é o único lugar do país com uma identidade globalmente brasileira.
Mais ligado agora ao Centro e à Zona Norte pelo metrô, misturando aposentados, classe média claudicante, turistas desavisados, lojas de segunda, camelôs de primeira, gente educada, gente debochada, arquitetura cinquentona, marquises desabantes, ônibus aleatórios, velhotes boas-praças, porteiros cearenses, amendoeiras comportadas, poentes exultantes, o bairro transcende o regionalismo que cinge Ipanema, o Pelourinho ou o Bexiga e se desdobra numa autenticidade verdadeiramente nacional.
No Mundus Copacabanensis impera o restaurante a kilo, onde se almoça mal sentado. As posições do corpo em determinadas funções diferem de uma cultura para outra. Em O Soldado Prático (1610), Diogo do Couto conta como a Inquisição portuguesa em Goa encanava com os homens indianos que urinavam de cócoras, interpretando tal postura como um ato anti-cristão. Da mesma forma, os missionários europeus desembarcados na Oceania e noutras paragens ultramarinas, aporrinhavam os nativos que transavam de um jeito ou de outro, impondo-lhes o modelo padrão fixado pela Igreja desde o século XIII: o homem deitado em cima da mulher. Daí, a origem da « posição do missionário », expressão cunhada por indígenas persuadidos que os missionários só transavam naquela posição.
Nesta ordem de idéias, está faltando um estudo bem refletido sobre a “Antropologia do Restaurante a kilo”. Na Europa come-se sentado, nos EUA almoça-se de pé (uma das coisas surpreendentes, e significativas, é a ausência de um restaurante minimamente qualificado no Dulles Airport, principal aeroporto de Washington; só há fast-foods com mesas meio sujas de restos de comida; para fazer uma refeição sentado, com garfo e faca, toalha e guarnapo de tecido na mesa, atendido por um garçom oferecendo cardápio, vinho ou cerveja, é preciso mudar de prédio e andar quilômetros até um restaurante que serve um filé esquisito com um molho adocicado do Kentucky).
Os restaurantes a kilo de Copacabana representam uma situação intermediária entre a européia e a americana: a refeição é feita nas mesas, mas as pessoas parecem estar sentadas na beira na cadeira. Prontas para cair fora logo que ingurgirtarem a mistureba mal pesada que amontoaram no prato.
Depois que o Rio de Janeiro deixou de ser capital federal, sofrendo as consequências de uma mudança “porra louca” -, como classificou recentemente a grande Fernanda Montenegro -, o Brasil perdeu um pouco o seu eixo. Nunca mais haverá no país uma cidade que seja, ao mesmo tempo, capital política, cultural e econômica. Copacabana mantém um pouco da centralidade nacional que antes encobria o Rio de Janeiro inteiro.
10 comentários:
Excelente! Legal, professor, ler o senhor num blog simples, escrevendo de forma simples (não simplista) com um mortal para os mortais. Não que o senhor não fosse assim. É que não o conhecia até lê-lo em Veja (era uma das poucas colunas que lia naquela revista que detesto). Um professor da Sorbonne que escreve para grande mídia acaba ficando com uma certa aura de inatingível... e seu blog quebra isso.
Você esqueceu de mencionar os travestis acompanhados de homens boa-pinta. PS1: escrevo da cidade que é fruto da porra-louquice; PS2: a respeito do texto em Nomínimo, eu desconhecia a existência de uma paróquia denominada Nossa Senhora Achiropita; PS3: acompanho o raciocínio do colega comentarista Fernando.
Também concordo com o Fernando. Quando literalmente devoramos "O trato dos viventes" na gradução, não imaginava que o senhor pudesse manter um blog como esse. Comecei a acompanhá-lo a uns dois meses atrás e não parei mais.
Como ex-morador de copacabana, devo acrescentar que o bairro tem outras peculiaridades interessantes, como as quadras auto-suficientes (quase toda quadra tem farmácia, mercadinho, banca de jornal, etc., porque os velhinhos não podem se locomover muito), ou a super-abundância de Internet Cafés (nunca vi nada parecido em nenhuma grande metrópole do mundo).
como carioca amador, acho que Copacabana tem também seus encantos: basta citar, no plano gastronômico, o velho Cervantes na Prado Jr., a Marisqueira, a Adega Perola na Siqueira Campos, em frente ao shopping onde aconteceu o histórico show Opinião, o Lucas. Esses quatro, somados a restaurantes medianos e de tradição recente, como Manuel e Joaquim, fazem um bom contraponto à proliferação de quilos. E os recantos em área tão densamente povoada e neurótica: o posto 6, com sua colônia de pescadores; o bairro Peixoto. Inclassificável é o menor/maior boteco do mundo, onde vira e mexe são despejadas turmas de suecos ou ingleses, o Bip-Bip do Alfredinho. Enfim, Copacanana é o Brasil e é um mundo.
Milton,
Suspeito que o Lucas tenha fechado, uma tragédia. A propósito, não podemos esquecer o Alfaia, na Inhangá (minha rua favorita, depois do Bairro Peixoto), talvez o melhor restaurante português do Rio, e a Colombo do Forte do Posto 6, que todo mundo que vai ao Rio deveria conhecer (e, obviamente, sentar do lado de fora para ver a melhor vista de Copa que existe).
o Lucas fechou? Puxa... O Alfaia eu não conheço mas tinha me esquecido do (ou da? pedra) Inhangá, outro oásis de Copacabana. Por falar nisso, há uma bela crônica do Manuel Bandeira sobre esse cantinho. Vejo pelo blog do prof. Alencastro que no Rio o Brasil ainda não se esqueceu de si...
Milton, recomendo o Alfaia vivamente. E, a propósito, a Inhangá tem um site sobre ela:
http://www.copacabana.com/r-inhan.shtml
Vou sair à procura dessa crônica do Bandeira, valeu pela dica!
peço a permissão do prof. Alencastro para continuar esse diálogo. Sobre os botequins portugueses, acho que essa é uma das glórias - senão a glória maior - gastronômicas do Rio. Engraçado... aqui em São Paulo os lusíadas abriram preferencialmente padarias, enquanto no Rio os botequins predominam e, em alguns casos, como pude comprovar, não ficam devendo nada para os de Lisboa. Conheço razoavelmente aqueles que vão de Laranjeiras a São Cristóvão, sendo que o Penafiel, na Senhor dos Passos (Machado de Assis foi coroinha na Igreja da Lampadosa, logo ali na esquina), é o meu preferido. Quanto à crônica do Bandeira, está em "Andorinha, andorinha", antologia organizada por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade. E viva o Alfaia!
Fui reler a crônica do Bandeira e verifiquei que a memória me traiu. A crônica, na verdade, não fala diretamente do Inhangá, mas de um café no Inhangá onde existia um painel pintado pelo grande Alberto da Veiga Guignard. Bandeira diz que vale a pena ir lá só para apreciar o painel - desconfio que nem o café e nem o painel não existam mais. A crônica sobre o Inhangá, se não me engano, está num livro organizado por Bandeira e Drummond chamado "Rio de Janeiro em Prosa e Verso", editado pela José Olympio no 4º Centenário da cidade (1965) - e que dá uma idéia incrível, entre outras coisas, da cultura histórica desses dois grandes poetas.
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