domingo, 26 de novembro de 2006

II - O escravismo no Brasil, em Cuba e nos EUA


O semanário britânico, "The Illustrated London News", com uma tiragem de 65.000 exemplares, publicou em 1849, este desenho « Captura de um negreiro brasileiro pelo H.M.S. Rattler ao largo de Lagos». A ilustração acompanha a palpitante reportagem sobre a captura pela marinha de guerra inglêsa, na costa da atual Nigéria, da escuna "Andorinha" pertencente a traficantes da Bahia. Segundo a revista, a equipagem era formada por 38 brasileiros « que pareciam degoladores».

Observe-se as discrepâncias existindo entre Cuba e o Brasil, os dois maiores importadores de africanos na primeira metade do século XIX. De saída, o estatuto político da Ilha – colônia espanhola até 1898 – limitava a autonomia dos cubanos. Em seguida, Cuba (e Porto Rico) estava submetida a um jôgo de influências, no qual, além de Madrí e de Londres (oposto ao tráfico negreiro praticado pelos cubanos), Washington também intervinha. À caça de negreiros, a marinha de guerra inglesa não podia penetrar nas águas cubanas por causa da hostilidade da Espanha e dos EUA. No Brasil, o caso era outro. O país se apresentava como a única nação independente intensamente envolvida no tráfico negreiro e dotada de um escravismo de dimensões continentais. Declarado ilegal em 1831, pela legislação brasileira editada sob pressão britânica, e considerado em seguida como um crime de pirataria, o comércio negreiro prosseguiu até 1850 e a escravidão só foi abolida em 1888.
Separado o caso colonial cubano do caso brasileiro, cabe abordar a natureza do escravismo entranhado no Estado nacional, como acontecia nos EUA e no Brasil. Deportado da África ou nascido no solo brasileiro, o cativo incorporava-se ao campo das leis civís, comerciais e penais do país. Tais leis eram debatidas e redigidas no Parlamento, nas Assembléias provinciais e nas câmaras municipais. É também nos tribunais brasileiros que se definia a jurisprudência na matéria. Nas Faculdades de Direito de São Paulo e de Recife, juristas e futuros advogados -, cuja vida e profissão se imiscuia no cotidiano dos escravos -, estudavam o efeito contraditório da extensão do Direito Positivo na sociedade escravista. Da mesma forma, era nas instâncias nacionais que se decidia o futuro do escravismo, ou sua eventual abolição, e as alternativas presentes no horizonte dos cidadãos. O mesmo ocorria no Sul dos EUA. Por isso, ali e no Brasil, o caráter local, nacional, das leis, levava à refundação do escravismo no quadro do Direito moderno e da contemporaneidade. Desde logo, a afirmação da escravidão como fundamento da soberania nacional define, no Sul dos EUA e no Brasil, um campo histórico original.


Isto pôsto, é importante notar as disparidades entre os dois países. Dada a organização federal americana, o abolicionismo conseguiu consolidar-se na esfera regional. Quando o tráfico negreiro para os EUA foi abolido em 1807, a escravidão havia sido eliminada em 8 dos 17 Estados americanos. Dai para a frente, o sistema subsistiu entre os Sulistas como uma prerrogativa regional combatida pelos outros Estados da federação.

No Brasil, ao contrário, a escravidão se estendia sobre a totalidade do território, envolvendo todas as camadas sociais e unindo a opinião pública em torno do sistema. Para se ter uma idéia, em 1850, na província do Rio de Janeiro, o número de escravos (294.000) ultrapassava o número de livres e libertos (264.000). Na cidade do Rio, côrte de uma monarquia que tinha pretensões de representar a civilização européia no Novo Mundo, viviam na mesma data, 266.000 habitantes dos quais 110.000 (41%) eram escravos, formando a maior concentração urbana de cativos das Américas e da época moderna. Ricos, remediados e pobres; padres, padeiros e militares; fazendeiros e escreventes; muita gente possuía escravos.


Este largo consenso nacional sobre a propriedade escrava compõe o fundamento histórico do escravismo brasileiro.




2 comentários:

Anônimo disse...

Prezado Professor Luís Felipe, parabéns por tratar da questão do escravismo, tema fundamental - me parece que cada vez mais - para que possamos entender a nossa formação e porque somos (a nação brasileira - se é que há uma)o que somos.
Impressionam os números citados pelo Senhor, mais escravos do que libertos na então Província do Rio de Janeiro (creio que talvez à época a primeira ou segunda mais populosa, não?). 41% (110.000 pessoas) de escravos na Cidade do Rio, em meados do Séc. XIX. A partir desses números talvez dê para entender melhor a falsidade de tentar passar o País como fundamentalmente branco, apenas com franjas negras minoritárias.

Das muitas questões que me vêm à mente, uma surge com mais insistência: me parece que com a República, o Estado passou a divulgar uma ideologia da igualdade (republicana) que ao invés de incluir os ex?-escravos e seus descendentes, terminou por contribuir para o reforçamento da sua exclusão. Por que isso? Desconfiou que um dos problemas foi a tentativa de embranquecer o negro, em termos genéticos, mas especialmente em termos culturais, étnicos. Será que o termo 'pardo' não teria surgido desse movimento de embraquecimento?

Enfim, a idéia de embranquecimento não estaria fora de lugar, importada pela elite republicana, que às vezes até com 'boa vontade' queria 'integrar' o negro mas anulando-o como ser e desconhecendo e (segue desconhecendo) a força da identidade cultural. Se posteriormente puder tratar de questões como essas agradeceria. Atenciosamente, Fernando Trindade

Anônimo disse...

Caro Professor,

os dados que o senhor apresenta sobre o número de escravos (negros) vis a vis o de homens livres (predominantemente brancos) não mostra também os limites que tem uma política de inclusão racial via cotas baseada somente na cor? Se no Brasil a maioria é de negros e pardos, qualquer política de quotas vai ser insuficiente, não? Como o senhor vê essa questão?