sábado, 18 de setembro de 2010

DE NABUCO A NABUCO

Escreví este artigo há mais de 20 anos. Retomei algumas coisas que escrevi aqui na minha curta conversa na Flip. No centenário da morte de Nabuco, publico de novo o texto inteiro. Não se trata de glorificar «Quincas, o Belo». Trata-se de destacar uma grande luta política, que Nabuco personificou brilhantemente numa parte de sua obra e de sua vida, e que depois renegou, como mostra esta frase infame de Minha Formação:
« Tenho convicção de que a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela pensa na madrugada de 15 de novembro, lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio.»





DE NABUCO A NABUCO

in “Folhetim”, Folha de São Paulo, 8 de maio de 1987, caderno B, pp.6-8

Luiz Felipe de Alencastro

                Numa época pouco longínqua – nossos bisavós tinham apenas vinte anos – houve liberais revolucionários nesse país. O mais expressivo, senão o mais radical dentre eles, foi Joaquim Nabuco, aliás, “Quincas, o Belo”, aliás “Filhote”. Neto e filho de senadores do Império, menino de engenho pernambucano e diplomata em Washington, deputado e panfletário, agitador nos bairros operários do Recife, e dândi em Londres. Rebelde com uma imensa causa, Nabuco ganhou a grande batalha da Abolição, salvando de um impulso verdadeiramente suicida sua classe, sua raça, sua casta. Há quem escreva livros e defenda teses para provar – com vocabulário de surfista, estilo erradio e tom condescendente – que Nabuco era tão somente reformista e de lambuja, “burguês”. Esquece-se que em 1879, quando ele e seus companheiros lançam a luta final contra a escravidão, há no país dois milhões de cativos e dezenas de milhares de senhores embrutecidos pela instituição. Para avaliar a fome canina de trabalho compulsório que dominava os empresários, considere-se que a Associação Comercial do Rio de Janeiro (cujo peso era similar ao da atual FIESP) não hesita em declarar em 1884: “A verdade é que no Brasil, como por toda parte, o liberto (escravo alforriado) é incompatível com um regime qualquer de economia e de ordem, de trabalho e de moralidade”. Nem o mais arguto analista conseguiria então prever os desdobramentos do conflito. Tudo poderia ter acabado num enfrentamento generalizado entre fazendeiros, capangas, polícia, brancos pobres, e imigrantes aterrorizados de um lado, contra abolicionistas, negros livres e cativos desesperados do outro. No final desse “pega-pra-capar” em escala nacional, o Exército entrava de sola, instaurando a via brasileira para o “apartheid”, teorizada por “racistas científicos” que ensinavam nas academias do pedaço. Tardio ou inconsequente, o 13 de maio de 1888 continua sendo o mais estrondoso maremoto que varreu a atribulada sociedade brasileira. De fato, a audácia quilométrica dos liberais abolicionistas só pode ser medida com as polegadas pusilânimes com que nós próprios avançamos no terreno da reforma agrária!
                Decerto, fomos a última nação americana a entrar no trem da civilização, extinguindo a escravidão depois até dos cubanos, que só tinham metade da culpa, pois ainda amargavam o estatuto colonial. Mas sem Rebouças, José do Patrocínio, Clapp, Nabuco, Antônio Bento, José Mariano, e tantos outros humildes lutadores livres, libertos e cativos, o opróbrio seria ainda maior. Teríamos seguido os princípios de emancipação lenta e gradual (“não recuar, não parar, não precipitar”, era o lema do gabinete Dantas na discussão da Lei dos Sexagenários) propugnada pelo reformismo dominante e entraríamos no século 20 carregando a ignominiosa cruz do cativeiro.
                Nossa herança ibérica arrefeceu as consciências sobre o absurdo histórico em que vivíamos. Portugal não conheceu correntes filosóficas e movimentos filantrópicos como os que vertebraram as campanhas abolicionistas nos países europeus e na América do Norte. A independência brasileira não comportava componente abolicionista. O opúsculo penetrante de José Bonifácio, Representação... sobre a Escravatura (1823), centrava-se numa preocupação primordial: liquidar o tráfico negreiro – transformado em pirataria pelo Direito Internacional – cuja continuação inviabilizava, a médio prazo, o Estado brasileiro. Toda a política do Primeiro Reinado e da Regência gira em torno desta questão. Superada essa crise em 1850 com a extinção do tráfico, coloca-se a viabilidade da nação brasileira. De chofre, pareceu aos reformistas que uma política imigratória adequada arianizaria a população e civilizaria progressivamente o contingente demográfico negro. Dai a ocorrência de uma polarização em torno da Lei de Terras (1850) – na verdade uma lei sobre a imigração e o trabalho rural – em detrimento do debate sobre a escravidão, no período que vai de 1850 a 1865. A necessidade de uma reinserção brasileira na diplomacia européia na perspectiva dos conflitos no Prata, as lições da Guerra Civil Americana e os impasses surgidos no Parlamento, conduzem à discussão sobre a escravidão em meados dos anos 1860. Esse é o contexto da elaboração da Lei do Ventre Livre (1871), que marca o retorno da política gradualista – o emancipacionismo – de eliminação da escravidão.  Como se abandonou a política gradualista para chegar à ruptura de 1888? Fatores externos e internos aceleraram os acontecimentos.
                Onipresente em todos os discursos, a universalidade do sentimento abolicionista entrava de maneira enviesada no país. Há um aspecto redutor na internacionalização do movimento, na medida em que a propaganda ocidental unificava a escravidão pré-colonial, tal qual existia na África ou no Império Otomano, e a escravidão colonial integrada à expansão capitalista, tal como ela aparecia nas Antilhas, nos Estados Unidos e no Brasil. Esse fato é expressivamente ilustrado pela equivocada analogia que os europeus traçavam entre Pedro II, supostamente abolicionista, e Leopoldo I, que criara na África Central o rei independente do Congo, com a justificação ideológica de ali suprimir a escravidão, mas com o objetivo prático de dar uma colônia africana ao problemático reino da Bélgica. Nesse sentido, nada teria sido possível sem uma dinâmica interna abolicionista.
                Observe-se que há um óbvio antagonismo entre o processo de definição da propriedade, resultado da evolução do direito positivo – que inapelavelmente reifica o escravo na sua função de fator de produção e de ativo negociável – e o processo de personalização dos cativos, decorrente da difusão de formas não-escravistas de trabalho e da internacionalização do abolicionismo. Esse antagonismo é perfeitamente detectável na transformação do escravo em bem imóvel na Lei Hipotecária de 1865, elemento fundamental para o desenvolvimento do crédito rural, e na proibição levantada em 1869 à separação de famílias escravas nos leilões públicos. Por um lado amplia-se o crédito dos fazendeiros escravocratas, por outro lado bloqueia-se parcialmente o mecanismo de formação de preço e o compara e venda do escravo-mercadoria. A bagunça assim criada na economia rural freava a execução das hipotecas, pois os credores estariam confrontados aos azares da gestão direta das propriedades escravistas hipotecadas. Igualmente problemática era a venda dessas propriedades, visto que a mudança de proprietário desorganizava a produção e perturbava as relações escravistas. Nessa ordem de idéias, não é excessivo afirmar que a penetração do capital bancário estrangeiro na esfera da produção agrícola foi travada precisamente por esse tipo de embaraço. Preservamos a nacionalização de nossa agricultura porque éramos atrasados demais para sermos digeridos pelo estrangeiro. A observação vale tanto para o período holandês (século 17), como para o período da preponderância britânica (século 19).
                Outro problema, ainda na esfera legal, é o que surge no âmbito do Direito Penal. O interesse público conduzia à restrição dos castigos que os senhores exerciam diretamente sobre os cativos: a brutalidade irresponsável de um senhor podia provocar revoltas que colocavam toda a população branca das cercanias em perigo. Mas a irrupção da autoridade pública além das porteiras das fazendas, para prender feitores e senhores sanguinários, subvertia as relações entre senhores e escravos. Acusado de assassinar um de seus escravos, um fazendeiro foi detido em sua propriedade. Seu irmão protestou contra a atitude do delegado, pois “os senhores eram desmoralizados pela autoridade, em frente de seus próprios escravos”. Temia-se uma rebelião de cativos na região (zona de Campos) porque já havia chegado a notícia de que um outro senhor fora conduzido à cadeia por haver castigado seu escravo. Por outro lado os proprietários evitavam denunciar escravos criminosos a fim de não desvalorizar seu preço. Uma escrava cozinheira pôde assim envenenar sucessivamente várias famílias do Rio de Janeiro, que inadvertidamente a compraram, antes de ser presa polícia. Narrando o acontecimento, o Jornal do Commércio concluía: “Desgraçadamente abundam os fatos de escravos perversos e assassinos vendidos pelos senhores, para salvarem seu valor, sem se importarem dos males que irão causar aos novos senhores”.
                Enfim, e, sobretudo, há o conflito maior entre direito à liberdade e direito de propriedade, conflito cristalizado na carta romanesca mas não menos dramática que um jovem estudante de Direito envia em 1860 ao jornal O Tymbira editado pelos acadêmicos paulistas da Faculdade do Largo de São Francisco: “Com os meus compêndios debaixo do braço, me dirigia do templo das três irmãs – Ciência, Verdade e Justiça – para a minha pobre locanda. Ao dobrar a primeira esquina... a cínica expressão do leiloeiro feriu-me os ouvidos: “250 mil réis pelo escravo Antônio”. Então tudo compreendi. Era o açougue de carne humana. Era a imoralidade erigida em seu altar pela mão da lei!... Há poucos minutos a eloquente voz de meu mestre tinha me falado da igualdade dos homens! Abri então meu compêndio e de arranquei essa página de escárnio... E esta terra é o Império do Brasil? O Império do Brasil que se ufana de sua Constituição?”.
                Tanto a geração dos emancipacionistas, Perdigão Malheiro, Nabuco de Araújo, Teixeira de Freitas, que estudaram na Faculdade de Direito de Olinda e Recife, quanto os abolicionistas da geração seguinte que frequentaram a Faculdade de São Paulo, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, foram atropelados  “ao dobrar a primeira esquina” por essa contradição humilhante. Assim, é no meio dos advogados e magistrados de primeira instância que a causa dos escravos – tanto pela universalidade de seus princípios como pela sua paradoxal interferência no cotidiano burguês – encontrará respaldo teórico e reflexão prática.
                Em consequência, nem a campanha abolicionista ocidental era imediatamente assimilável aqui, nem o contexto político brasileiro era assim tão chucro, incapaz de metabolizar o movimento. Houve, portanto, uma reavaliação dos objetivos e meios da campanha, à luz da realidade brasileira. Como foram definidas as regras do jogo abolicionista?
                Em primeiro lugar deixou-se claro que o objetivo do movimento não era o de suscitar uma revolução. “A propaganda abolicionista não se dirige aos escravos. Seria uma covardia, inepta e criminosa, e, além disso, um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à insurreição, ou ao crime, homens sem defesa; e que a lei Lynch ou justiça pública, imediatamente haveria de esmagar» (7, 23)[1]. Não queremos a revolução, nem os escravos podem fazer revolução” (7, 241). Nabuco não está sozinho nessa estratégia. Discutindo na época a eventual adesão dos escravos cubanos e brasileiros, à organização, a 2ª Internacional, sob a liderança de Engels, também decidiu que os escravos não eram agentes da sua própria história.
                Em segundo lugar, os abolicionistas decidiram escolher o Parlamento como a arena central do debate: “A escravidão precisa do silêncio, da ignorância, da cegueira do país para viver. Exposta à publicidade do Parlamento, denunciada em suas anomalias e seus crimes, tornada incompatível com a dignidade pessoal das próprias classes condenadas a mantê-la, ela não tem vida possível, não tem futuro...” (12, 29). “É no Parlamento e não em fazendas ou quilombos do interior, nem nas ruas e praças das cidades, que se há de ganhar, ou perder, a causa da liberdade” (7, 25).
                Em terceiro lugar, o Parlamento houve por bem integrar os abolicionistas em seu seio. Quando a candidatura de Nabuco parecia ameaçada pelo aparelho do Partido Liberal, um prócer do partido, o carioca (e poeta) Francisco Otaviano, saiu em sua defesa: “Arredar tais personalidades do teatro natural das lutas da razão e da ciência política, não é promover o bem público ... é pelo contrário ... levantar de encontro à Câmara dos Deputados outros centros de ação sobre a sociedade, porque terão o prestígio e a garantia de liberdade de controvérsia no exame e discussão dos assuntos vitais para o Brasil ...”(7, 333). (Discurso que dá a medida do horizonte político da gorilada, fardada e civil, que fechou o Congresso em 1968 por causa de um discurso de um deputado...)
                Em quarto lugar, os deputados abolicionistas transformaram o movimento em questão suprapartidária.  Coerentemente, defendiam também a preeminência da Câmara – onde podiam penetrar – sobre o Senado oligárquico. Onde é que o trem descarrilou, jogando o carro imperial no brejo em 1889 ?
                A indefinição quanto ao Terceiro Reinado, a equação Federalista, as aspirações republicanas, as pressões militares, têm naturalmente seu peso no desenlace de 1889. Porém, nenhum desses fatores teve a significação histórica da campanha abolicionista. Nabuco não estava sozinho na batalha. Deliberadamente, os militantes da causa fizeram a promoção do ilustre pernambucano, elegendo-o como porta-voz do Abolicionismo. Por seu lado, Nabuco incorporou os elementos internos e externos da questão, adotando sugestões dos companheiros e exemplos estrangeiros, injetando uma densidade jamais igualada – nem antes nem depois – no discurso político brasileiro.
                A análise nabuquiana incorpora e estrutura a radicalização do movimento abolicionista. Como ele próprio explica em 1884: “Quando se fez a Lei Rio Branco (Lei do Ventre Livre,1871) o país via dois únicos males na escravidão : a condição infeliz dos cativos e o mau conceito em que são tidos no mundo os países escravistas. Era preocupação portanto de sensibilidade e de susceptibilidade nacional. Hoje, porém, a nação está convencida de que a escravidão é a causa de todos os seus vícios políticos e fraquezas sociais ; um obstáculo invencível ao seu progresso ;  a ruína de suas finanças, a esterilização de seu território ; a inutilização para o trabalho de milhões de braços livres ; a manutenção do povo em estado de absoluta e servil dependência para com os poucos proprietários de homens que repartem entre si o solo produtivo” (12, 94). De golpe, transforma-se a natureza do combate político, mudam as alianças, ampliam-se os objetivos da campanha : “Em 1871, o espírito liberal do país via causa do mal-estar nacional no Governo Pessoal e fez a explosão contra ele, fazendo brotar do chão o Partido Republicano. Hoje, porém, se reconhece que o próprio Governo Pessoal – o qual consiste em exercer o Imperador enorme influência sobre os seus ministros  e em poder mudar as situações políticas à vontade – é uma criação negativa da escravidão. Mais ainda, o próprio Partido Republicano encarregou-se de provar o poder desta, porquanto tendo a monarquia descontentado à grande propriedade territorial, os republicanos não souberam resistir à sedução fatal de procurarem a clientela escravista, que a dinastia tinha passageira e involuntariamente alienado de si” (12, 94).
                Toda a complexidade do pensamento nabuquiano está aqui resumida. A constituição das classes sociais, a formação da opinião pública ou a própria natureza do sistema político, decorrem do movimento dialético entre as relações de produção e a organização da sociedade. Pouco importa que o regime seja monárquico ou republicano, presidencialista ou parlamentarista. O estrangulamento das liberdades públicas e a atrofia da sociedade não aparecem como uma consequência do poder do Estado luso-brasileiro que se expande desde o medievo ibérico. Não é a autorreprodução do estamento burocrático que mina a sociedade civil. Bem ao contrário, é precisamente porque as relações de produção dissocializam  uma parte considerável da população, que a burocracia estatal encontra espaço político – e justificação histórica : a missão civilizadora – para medrar no Brasil. Vê-se a distância que separa Nabuco de outro grande pensador liberal, Raimundo Faoro. Adivinha-se também que de O Abolicionismo (1883) a Os Donos do Poder (1958 e 1973), a análise sobre o fenômeno autoritário recuou, em vez de progredir. Menos por eventuais discrepâncias intelectuais dos respectivos autores, do que pela distinção dos abusos que combatiam : a escravidão é uma formação mil vezes mais complexa do que o Estado Novo varguista.
                Consciente da perenidade dos malefícios da sociedade escravista, no nível político como na esfera da representação (“O triste vocabulário da usado em nossa época, que é a vergonha de nossa língua, há de reduzir muito no futuro as pretensões liberais da atual sociedade brasileira” 7, 33), Nabuco não pensa entretanto que relações senhoriais possam dar lugar a uma “ideologia da servidão”. Mesmo na sua autobiografia, quando reminiscências da infância projetam uma visão idealizada sobre “o jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo”, o autor apressa-se em completar : “Também eu receio que essa espécie particular de escravidão tenha existido somente em propriedades muito antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade, e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e os escravos tivesse feito de um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolado do mundo” (1, 182-183).
                Também aqui – na análise do fato moral complexo da escravidão: o laço entre o escravo e o senhor” - houve um recuo, desta vez magistralmente consubstanciado em Casa Grande e Senzala (1933). Enquanto Freyre parte da interpretação sincrônica do universo dos escravos domésticos das zonas mais ou menos estagnadas do Nordeste, generalizando suas conclusões para todo o Brasil e em seguida para o conjunto do mundo português nos trópicos (o “Luso-tropicalismo”), Nabuco restringe socialmente e data historicamente “esta espécie particular de escravidão”. “Tal aproximação (senhor - escravo) entre situações tão desiguais perante a Lei seria impossível nas novas e ricas fazendas do Sul, onde o escravo, desconhecido do proprietário, era somente um instrumento de colheita” (1, 183).

A questão agrária

                Durante a memorável campanha de 1884 e 1885, “o melhor de minha vida”, diria ele mais tarde, Nabuco dá o salto qualitativo que catapulta o Abolicionismo para a contemporaneidade. Convencido por André Rebouças – o mais fascinante e complexo personagem do movimento – Nabuco passa a ligar o Abolicionismo à questão agrária : “Precisamos... empregar no trabalho rural toda essa população inativa, privada de trabalho e para gozo da qual nós deveremos reconquistar a terra de que a escravidão fez um monopólio, por meio de um novo imposto que é uma necessidade da situação – o imposto territorial” (7,354). “Não separarei mais as duas questões – a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão não nos basta, é preciso destruir a obra da escravidão” (7, 286). Nessa mesma linha, rompendo com toda a ideologia do desenvolvimentismo autoritário imigrantista, Nabuco insiste que o Brasil é dos brasileiros, “pertence aos que o habitam e aos seus descendentes e não a uma classe privilegiada de proprietários, nem a um povo ainda por importar” (7,239)
                Paradoxalmente, essa radicalização da campanha, que faz de Nabuco nosso contemporâneo, o excluirá do terreno político no advento da República. Vendo a sofreguidão com que os republicanos incorporavam a “plutocracia” escravocrata em suas fileiras, Nabuco rompe com esses companheiros e permanece do lado da Coroa. Toda uma geração de dedicados militantes sociais e humanistas ficará no escanteio da História quando a aliança de militares, republicanos, latifundiários assume o poder, quebrando a dinâmica abolicionista.
                Não é essa porém a razão do esquecimento do liberalismo revolucionário. O primeiro responsável pela desinformação sobre as teses do movimento ... foi o próprio Nabuco. Em Minha Formação (1900), ele afirma que era favorável à Abolição com indenização dos proprietários de escravos (1,110). Ora, em 1884, quando a questão foi discutida, ele próprio dizia nos comícios do Recife : “A emancipação imediata com indenização é uma tolice...”. Calculando o impacto dessa indenização sobre o orçamento público, concluía que não haveria recursos suficientes para tal medida. “Não há nada que nos obrigue a continuar uma prática reputada criminosa pelo mundo inteiro, somente porque não temos dinheiro para desapropriá-la ... o Brasil não é bastante rico para pagar o seu crime”. Uma frase dessas, digna de ser pichada nas paredes, não pode ser esquecida. Já tomado de empolgação pelo papa, volta atrás sobre a criminosa omissão da Igreja na campanha abolicionista, que fora pesadamente denunciada por ele próprio, para sobrevalorizar a adesão de vigésima quinta hora dos bispos brasileiros e do papa à causa da liberdade dos cativos. Em Um Estadista do Império (1897-1899) o amor filial inspira uma interpretação conservadora da política imperial. Não há, nesse grande livro, menção sobre o movimento abolicionista entre os Praieiros, que seu pai combateu, sobre a Lei de Terras, sobre a imensa cegueira de líderes como Bernardo Pereira de Vasconcelos, que quase botaram tudo a perder, apoiando a cáfila de negreiros que dominava o país real.
                Nabuco é o primeiro culpado pelo esquecimento de O Abolicionismo e pela projeção de Minha Formação, condenado a uma leitura ginasiana, e de Um Estadista do Império, que faz a alegria dos maquiavélicos de prefeitura do interior.
                Hoje – quando “ao dobrar a primeira esquina” vemos padeiros ladrar contra crianças de quatro anos que pedem esmola, diante da indiferença geral dos clientes, quando a polícia agride e mata gente pobre que não tem onde morar – falta leitura e reflexão sobre O Abolicionismo, diamante fulgurante que deveria ser pendurado em cima das mansões de Angra, onde se discute o destino da pátria, das torres de televisão, onde se esquece que o Brasil, como disse Nabuco, “é pobre e não é branco”. Que saudade dos Abolicionistas!



[1] . As citações de Joaquim Nabuco e de Francisco Otaviano foram extraídas das Obras Completas de Joaquim Nabuco, Instituto Progresso Editorial, São Paulo, 1949, 14 volumes.



3 comentários:

Ricardo disse...

Gostei do artigo. Continue postando!

Max disse...

A política pegando fogo no Brasil, os intelectuais tucanos assinando manifestos absurdos, o Serra dizendo no Clube Militar que Lula criou a "República Sindicalista" e o senhor escrevendo sobre... Joaquim Nabuco?!

Felipe Alves disse...

Prof. Luiz Felipe,

Seria muito interessante ver um artigo seu sobre as eleições presidenciais brasileiras. Como disse o Max aí em cima, a coisa aqui está realmente pegando fogo e a tendência é a temperatura aumentar!

Um abraço,

Felipe.