domingo, 11 de abril de 2010

Cotas e democracia


O texto abaixo sobre as cotas para negros nas universidades foi apresentado ao STF. Na audiência pública, onde compareci no dia 4/03/2010 como representante da Fundação Palmares, junto com a jurista Flávia Piovesan, autora de um notável parecer, modifiquei meu texto para tomar em conta intervenções do dia anterior (é a fala que foi transmitida pela TV Justiça e que está no Youtube). Fiz em seguida um resumo que publiquei na Folha em 7/03/2010.
Por iniciativa dos professores Martha Abreu (da UFF) e João Reis (UFBA) este parecer circulou entre especialistas, recebendo o apoio de uma centena de pesquisadores e professores universitários « na sua maioria especialista em história da escravidão e da pós-abolição no Brasil» (Ver post acima). Na elaboração do parecer, agradeço a ajuda de Fúlvia Rosemberg (Fundação Carlos Chagas), Ciro Biderman (FGV), Paulo Sérgio Pinheiro (USP), Mário Theodoro (IPEA), Marcelo Tragtemberg (UFSC), José Jorge de Carvalho(UNB) e da procuradora federal Dra. Dora Bertúlio (Fundação Palmares).

Já tinha escrito sobre isso há alguns anos e v

oltarei ao assunto mais adiante.



Parecer sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF/186, apresentada ao Supremo Tribunal Federal

No presente ano de 2010, os brasileiros afro-descendentes, os cidadãos que se auto-definem como pretos e pardos no recenseamento nacional, passam a formar a maioria da população do país. A partir de agora -, na conceituação consolidada em décadas de pesquisas e de análises metodológicas do IBGE -, mais da metade dos brasileiros são negros.
Esta mudança vai muito além da demografia. Ela traz ensinamentos sobre o nosso passado, sobre quem somos e de onde viemos, e traz também desafios para o nosso futuro.
Minha fala tentará juntar os dois aspectos do problema, partindo de um resumo histórico para chegar à atualidade e ao julgamento que nos ocupa. Os ensinamentos sobre nosso passado, referem-se à densa presença da população negra na formação do povo brasileiro. Todos nós sabemos que esta presença originou-se e desenvolveu-se na violência. Contudo, a extensão e o impacto do escravismo não tem sido suficientemente sublinhada. A petição inicial de ADPF apresentada pelo DEM a esta Corte fala genéricamente sobre “o racismo e a opção pela escravidão negra » (pp. 37-40), sem considerar a especificidade do escravismo em nosso país.
Na realidade, nenhum país americano praticou a escravidão em tão larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de 5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856). O outro grande país escravista do continente, os Estados Unidos, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de um século (entre 1675 e 1808) e recebeu uma proporção muito menor -, perto de 560.000 africanos -, ou seja, 5,5% do total do tráfico transatlantico.
[1] No final das contas, o Brasil se apresenta como o agregado político americano que captou o maior número de africanos e que manteve durante mais tempo a escravidão.
Durante estes três séculos, vieram para este lado do Atlântico milhões de africanos que, em meio à miséria e ao sofrimento, tiveram coragem e esperança para constituir as famílias e as culturas formadoras de uma parte essencial do povo brasileiro. Arrancados para sempre de suas famílias, de sua aldeia, de seu continente, eles foram deportados por negreiros luso-brasileiros e, em seguida, por traficantes genuinamente brasileiros que os trouxeram acorrentados em navios arvorando o auriverde pendão de nossa terra, como narram estrofes menos lembradas do poema de Castro Alves.
No século XIX, o Império do Brasil aparece ainda como a única nação independente que praticava o tráfico negreiro em larga escala. Alvo da pressão diplomática e naval britânica, o comércio oceânico de africanos passou a ser proscrito por uma rede de tratados internacionais que a Inglaterra teceu no Atlântico.
[2]
O tratado anglo-português de 1818 vetava o tráfico no norte do equador. Na sequência do tratado anglo-brasileiro de 1826, a lei de 7 de novembro de 1831, proibiu a totalidade do comércio atlântico de africanos no Brasil.
Entretanto, 50.000 africanos oriundos do norte do Equador são ilegalmente desembarcados entre 1818 e 1831, e 710.000 indivíduos, vindos de todas as partes da África, são trazidos entre 1831 e 1856, num circuito de tráfico clandestino. Ora, da mesma forma que o tratado de 1818, a lei de 1831 assegurava plena liberdade aos africanos introduzidos no país após a proibição. Em conseqüência, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram considerados sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179 do «Código Criminal», de 1830, que punia o ato de “reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade ». A lei de 7 de novembro 1831 impunha aos infratores uma pena pecuniária e o reembôlso das despesas com o reenvio do africano sequestrado para qualquer porto da África. Tais penalidades são reiteradas no artigo 4° da Lei de 4 de setembro de 1850, a lei Eusébio de Queirós que acabou definitivamente com o tráfico negreiro.
Porém, na década de 1850, o governo imperial anistiou, na prática, os senhores culpados do crime de seqüestro, mas deixou livre curso ao crime correlato, a escravização de pessoas livres.
[3] De golpe, os 760.000 africanos desembarcados até 1856 -, e a totalidade de seus descendentes -, continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888[4]. Para que não estourassem rebeliões de escravos e de gente ilegalmente escravizada, para que a ilegalidade da posse de cada senhor, de cada seqüestrador, não se transformasse em insegurança coletiva dos proprietários, de seus sócios e credores -, abalando todo o país -, era preciso que vigorasse um conluio geral, um pacto implícito em favor da violação da lei. Um pacto fundado nos “interesses coletivos da sociedade”, como sentenciou, em 1854, o ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco.
O tema subjaz aos debates da época. O próprio Joaquim Nabuco -, que está sendo homenageado neste ano do centenário de sua morte -, escrevia com todas as letras em “O Abolicionismo” (1883): “Durante cinqüenta anos a grande maioria da propriedade escrava foi possuída ilegalmente. Nada seria mais difícil aos senhores, tomados coletivamente, do que justificar perante um tribunal escrupuloso a legalidade daquela propriedade, tomada também em massa”
[5].
Tal “tribunal escrupuloso” jamais instaurou-se nas cortes judiciárias, nem tampouco na historiografia do país. Tirante as ações impetradas por um certo número de advogados e magistrados abolicionistas, o assunto permaneceu encoberto na época e foi praticamente ignorado pelas gerações seguintes.
Resta que este crime coletivo guarda um significado dramático: ao arrepio da lei, a maioria dos africanos cativados no Brasil a partir de 1818 -, e todos os seus descendentes -, foram mantidos na escravidão até 1888. Ou seja, boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda -, primeiro e sobretudo -, ilegal. Como escreví, tenho para mim que este pacto dos sequestadores constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira.
[6]
Firmava-se duradouramente o princípio da impunidade e do casuísmo da lei que marca nossa história e permanece como um desafio constante aos tribunais e a esta Suprema Corte. Consequentemente, não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança escravista.
Outra deformidade gerada pelos “males que a escravidão criou”, para retomar uma expressão de Joaquim Nabuco, refere-se à violência policial.
Para expor o assunto, volto ao século XIX, abordando um ponto da história do direito penal que os ministros desta Corte conhecem bem e que peço a permissão para relembrar.
Depois da Independência, no Brasil, como no sul dos Estados Unidos, o escravismo passou a ser consubstancial ao State building, à organização das instituições nacionais. Houve, assim, uma modernização do escravismo para adequá-lo ao direito positivo e às novas normas ocidentais que regulavam a propriedade privada e as liberdades públicas. Entre as múltiplas contradições engendradas por esta situação, uma relevava do Código Penal: como punir o escravo delinqüente sem encarcerá-lo, sem privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena prisão?
Para solucionar o problema, o quadro legal foi definido em dois tempos. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, em seu artigo 179, a extinção das punições físicas constantes nas aplicações penais portuguesas. “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”; a Constituição também prescrevia: “as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes”.
Conforme os princípios do Iluminismo, ficavam assim preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres.
Num segundo tempo, o Código Criminal de 1830 tratou especificamente da prisão dos escravos, os quais representavam uma forte proporção de habitantes do Império. No seu artigo 60, o Código reatualiza a pena de tortura. “Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites, e depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar, o número de açoites será fixado na sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de 50”. Com o açoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido o dilema.
Longe de restringir-se ao campo, a escravidão também se arraigava nas cidades. Em 1850, o Rio de Janeiro contava 110.000 escravos entre seus 266.000 habitantes, reunindo a maior concentração urbana de escravos da época moderna. Neste quadro social, a questão da segurança pública e da criminalidade assumia um viés específico.
[7] De maneira mais eficaz que a prisão, o terror, a ameça do açoite em público, servia para intimidar os escravos.
Oficializada até o final do Império, esta prática punitiva estendeu-se às camadas desfavorecidas, aos negros em particular e aos pobres em geral. Junto com a privatização da justiça efetuada no campo pelos fazendeiros, tais procedimentos travaram o advento de uma política de segurança pública fundada nos princípios da liberdade individual e dos direitos humanos.
Enfim, uma terceira deformidade gerada pelo escravismo afeta diretamente o estatuto da cidadania.
É sabido que nas eleições censitárias de dois graus ocorrendo no Império, até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros e mulatos alforriados, podiam ser votantes, isto é, eleitores de primeiro grau, que elegiam eleitores de 2° grau (cerca de 20.000 homens em 1870), os quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores e em 1882, o voto dos analfabetos foi vetado. Decidida no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava criar um ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral à maioria dos libertos. Gerou-se um estatuto de infracidadania que perdurou até 1985, quando foi autorizado o voto do analfabeto. O conjunto dos analfabetos brasileiros, brancos e negros, foi atingido.
[8] Mas a exclusão política foi mais impactante na população negra, onde o analfabetismo registrava, e continua registrando, taxas proporcionalmente bem mais altas do que entre os brancos.[9]
Pelos motivos apontados acima, os ensinamentos do passado ajudam a situar o atual julgamento sobre cotas universitárias na perspectiva da construção da nação e do sistema politico de nosso país. Nascidas no século XIX, a partir da impunidade garantida aos proprietários de indivíduos ilegalmente escravizados, da violência e das torturas infligidas aos escravos e da infracidadania reservada ao libertos, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram o país inteiro.
Por isso, agindo em sentido inverso, a redução das discriminações que ainda pesam sobre os afrobrasileiros -, hoje majoritários no seio da população -, consolidará nossa democracia.
Portanto, não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória, destinada a quitar dívidas da história e a garantir direitos usurpados de uma comunidade específica, como foi o caso, em boa medida, nos memoráveis julgamentos desta Corte sobre a demarcação das terras indígenas. No presente julgamento, trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre a política afirmativa no aperfeiçoamento da democracia, no vir a ser da nação. Tais são os desafios que as cotas raciais universitárias colocam ao nosso presente e ao nosso futuro.
Atacando as cotas universitárias, a ADPF do DEM, traz no seu ponto 3 o seguinte título « o perigo da importação de modelos : os exemplos de Ruanda e dos Estados Estados Unidos da América » (pps. 41-43). Trata-se de uma comparação absurda no primeiro caso e inepta no segundo.
Qual o paralelo entre o Brasil e Ruanda, que alcançou a independência apenas em 1962 e viu-se envolvido, desde 1990, numa conflagração generalizada que os especialistas denominam a « primeira guerra mundial africana », implicando também o Burundi, Uganda, Angola, o Congo Kinsasha e o Zimbabuê, e que culminou, em 1994, com o genocídio de quase 1 milhão de tutsis e milhares de hutus ruandenses ?
Na comparação com os Estados Unidos, a alegação é inepta por duas razões. Primeiro, os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo e servem de exemplo a instituições que consolidaram o sistema político no Brasil. Nosso federalismo, nosso STF -, vosso STF – são calcados no modelo americano. Não há nada de “perigoso” na importação de práticas americanas que possam reforçar nossa democracia. A segunda razão da inépcia reside no fato de que o movimento negro e a defesa dos direitos dos ex-escravos e afrodescendentes tem, como ficou dito acima, raízes profundas na história nacional. Desde o século XIX, magistrados e advogados brancos e negros tem tido um papel fundamental nesta reinvidicações.
Assim, ao contrário do que se tem dito e escrito, a discussão relançada nos anos 1970-1980 sobre as desigualdades raciais é muito mais o resultado da atualização das estatísticas sociais brasileiras, num contexto de lutas democráticas contra a ditadura, do que uma propalada « americanização » do debate sobre a discriminação racial em nosso país. Aliás, foram estas mesmas circunstâncias que suscitaram, na mesma época, os questionamentos sobre a distribuição da renda no quadro do alegado « milagre econômico ». Havia, até a realização da primeira PNAD incluindo o critério cor, em 1976, um grande desconhecimento sobre a evolução demográfica e social dos afrodescendentes.
De fato, no Censo de 1950, as estatísticas sobre cor eram limitadas, no Censo de 1960, elas ficaram inutilizadas e no Censo de 1970 elas eram inexistentes. Este longo período de eclipse estatística facilitou a difusão da ideologia da “democracia racial brasileira”, que apregoava de inexistência de discriminação racial no país. Todavia, as PNADs de 1976, 1984, 1987, 1995, 1999 e os Censos de 1980, 1991 e 2000, incluíram o critério cor. Constatou-se, então, que no decurso de três décadas, a desigualdade racial permanecia no quadro de uma sociedade mais urbanizada, mais educada e com muito maior renda do que em 1940 e 1950. Ou seja, ficava provado que a desigualdade racial tinha um carácter estrutural que não se reduzia com progresso econômico e social do país. Daí o adensamento das reinvidicações da comunidade negra, apoiadas por vários partidos políticos e por boa parte dos movimentos sociais.
Nesta perspectiva, cabe lembrar que a democracia, a prática democrática, consiste num processo dinâmico, reformado e completado ao longo das décadas pelos legisladores brasileiros, em resposta às aspirações da sociedade e às iniciativas de países pioneiros. Foi somente em 1932 -, ainda assim com as conhecidas restrições suprimidas em 1946 -, que o voto feminino instaurou-se no Brasil. Na época, os setores tradicionalistas alegaram que a capacitação política das mulheres iria dividir as famílias e perturbar a tranquilidade de nação. Pouco a pouco, normas consensuais que impediam a plena cidadania e a realização profissional das mulheres foram sendo reduzidas, segundo o preceito -, aplicável também na questão racial -, de que se deve tratar de maneira desigual o problema gerado por uma situação desigual.
Para além do caso da política de cotas da UNB, o que está em pauta neste julgamento são, a meu ver, duas questões essenciais.
A primeira é a seguinte : malgrado a inexistência de um quadro legal discriminatório a população afrobrasileira é discriminada nos dias de hoje?
A resposta está retratada nas creches, nas ruas, nas escolas, nas universidades, nas cadeias, nos laudos dos IML de todo o Brasil. Não me cabe aqui entrar na análise de estatísticas raciais, sociais e econômicas que serão abordadas por diversos especialistas no âmbito desta Audiência Pública. Observo, entretanto, que a ADPF apresentada pelo DEM, na parte intitulada « A manipulação dos indicadores sociais envolvendo a raça » (pp. 54-59), alinha algumas cifras e cita como única fonte analítica, o livro do jornalista Ali Kamel, o qual, como é sabido, não é versado no estudo das estatísticas do IBGE, do IPEA, da ONU e das incontáveis pesquisas e teses brasileiras e estrangeiras que demonstram, maciçamente, a existência de discriminação racial no Brasil.
Dai decorre a segunda pergunta que pode ser formulada em dois tempos. O sistema de promoção social posto em prática desde o final da escravidão poderá eliminar as desigualdades que cercam os afrobrasileiros? A expansão do sistema de bolsas e de cotas pelo critério social provocará uma redução destas desigualdades ?
Os dados das PNADs organizados pelo IPEA mostram, ao contrário, que as disparidades se mantém ao longo da última década. Mais ainda, a entrada no ensino superior exacerba a desigualdade racial no Brasil.
Dessa forma, no ensino fundamental (de 7 a 14 anos), a diferença entre brancos e negros começou a diminuir a partir de 1999 e em 2008 a taxa de frequência entre os dois grupos é praticamente a mesma, em torno de 95% e 94% respectivamente. No ensino médio (de 15 a 17 anos) há uma diferença quase constante entre 1992 e 2008. Neste último ano, foram registrados 61,0% de alunos brancos e 42,0% de alunos negros desta mesma faixa etária. Porém, no ensino superior a diferença entre os dois grupos se escancara. Em 2008, nas faixas etárias de brancos maiores de 18 anos de idade, havia 20,5% de estudantes universitários e nas faixas etárias de negros maiores de 18 anos, só 7,7% de estudantes universitários.
[10] Patenteia-se que o acesso ao ensino superior constitui um gargalo incontornável para a ascensão social dos negros brasileiros.
Por todas estas razões, reafirmo minha adesão ao sistema de cotas raciais aplicado pela Universidade de Brasília.
Penso que seria uma simplificação apresentar a discussão sobre as cotas raciais como um corte entre a esquerda e a direita, o governo e a oposição ou o PT e o PSDB. Como no caso do plebiscito de 1993, sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, a clivagem atravessa as linhas partidárias e ideológicas. Aliàs, as primeiras medidas de política afirmativa relativas à população negra foram tomadas, como é conhecido, pelo governo Fernando Henrique Cardoso.
Como deixei claro, utilizei vários estudos do IPEA para embasar meus argumentos. Ora, tanto o presidente do IPEA no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, o professor Roberto Borges Martins, como o presidente do IPEA no segundo governo Lula, o professor Márcio Porchman -, colegas por quem tenho respeito e admiração -, coordenaram vários estudos sobre a discriminação racial no Brasil nos dias de hoje e são ambos favoráveis às políticas afirmativas e às políticas de cotas raciais.
A existência de alianças transversais deve nos conduzir -, mesmo num ano de eleições -, a um debate menos ideologizado, onde os argumentos de uns e de outros possam ser analisados a fim de contribuir para a superação da desigualdade racial que pesa sobre os negros e a democracia brasileira.


Notas
[1].Ver o Database acessível no sítio http://www.slavevoyages.org/tast/index.faces
[2]. Demonstrando um grande desconhecimento da história pátria e supercialidade em sua argumentação, a petição do DEM afirma na página 35: “Por que não direcionamos a Portugal e à Inglaterra a indenização a ser devida aos afrodescendentes, já que foram os portugueses e os ingleses quem organizaram o tráfico de escravos e a escravidão no Brasil?”. Como é amplamente conhecido, os ingleses não tiveram participação no escravismo brasileiro, visto que o tráfico negreiro constituía-se como um monopólio português, com ativa participação brasileira no século XIX. Bem ao contrário, por razões que não cabe desenvolver neste texto, a Inglaterra teve um papel decisivo na extinção do tráfico negreiro para o Brasil
[3]. A. Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil – Ensaio Histórico, Jurídico, Social (1867), Vozes, Petrópolis, R.J., 1976, 2 vols. , v. 1, pp. 201-222. Numa mensagem confidencial ao presidente da província de São Paulo, em 1854, Nabuco de Araújo, ministro da Justiça, invoca “os interesses coletivos da sociedade”, para não aplicar a lei de 1831, prevendo a liberdade dos africanos introduzidos após esta data, Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império (1897-1899), Topbooks, Rio de Janeiro, 1997, 2 vols., v. 1, p. 229, n. 6
[4] . Beatriz G. Mamigonian, comunicação no seminário do Centre d’Études du Brésil et de l’Atlantique Sud, Université de Paris IV Sorbonne, 21/11/2006; D.Eltis, Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade, Oxford University Press, Oxford, U.K. 1989, appendix A, pp. 234-244.
[5] . Joaquim Nabuco, O Abolicionismo (1883), ed. Vozes, Petrópolis, R.J., 1977, pp 115-120, 189. Quinze anos depois, confirmando a importância primordial do tráfico de africanos -, e da na reprodução desterritorializada da produção escravista -, Nabuco afirma que foi mais fácil abolir a escravidão em 1888, do que fazer cumprir a lei de 1831, id., Um Estadista do Império (1897-1899), Rio de Janeiro, Topbooks,1997, 2 vols., v. 1, p. 228.
[6] . L.F. de Alencastro, “A desmemória e o recalque do crime na política brasileira”, in Adauto Novaes, O Esquecimento da Política, Agir Editora, Rio de Janeiro, 2007, pp. 321-334.

[7] . Luiz Felipe de Alencastro, “Proletários e Escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro 1850-1870”, in Novos Estudos Cebrap, n. 21, 1988, pp. 30-56;
[8] . Elza Berquó e L.F. de Alencastro, “A Emergência do Voto Negro”, Novos Estudos Cebrap, São Paulo, nº33, 1992, pp.77-88.
[9] . O censo de 1980 mostrava que o índice de indivíduos maiores de cinco anos "sem instrução ou com menos de 1 ano de instrução" era de 47,3% entre os pretos, 47,6% entre os pardos e 25,1% entre os brancos. A desproporção reduziu-se em seguida, mas não tem se modificado nos últimos 20 anos. Segundo as PNADs, em 1992, verificava-se que na população maior de 15 anos, os brancos analfabetos representavam 4,0 % e os negros 6,1 %, em 2008 as taxas eram, respectivamente de 6,5% e 8,3%. O aumento das taxas de analfabetos provém, em boa parte, do fato que a partir de 2004, as PNADs passa a incorporar a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas,Roraima, Pará e Amapá. Dados extraídos das tabelas do IPEA.
[10] . Dados fornecidos pelo pesquisador do IPEA, Mario Lisboa Theodoro, que também participa desta Audiência Pública.

10 comentários:

José Roberto F. Militão disse...

Prezado prof. Dr. Alencastro,

tive a honra de participar da audiência pública no STF em que V. S. pontificou com o vasto e robusto conhecimento histórico.

Naquela audiência, reiterei, como tenho feito há anos a defesa de uma TERCEIRA VIA, a adequada adoção de COTAS SOCIAIS, pelo recorte da renda (e não da escola pública) assim, assegurando aos mais pobres a igualdade na disputa pelos melhores talentos, brancos, pretos,pardos, enfim, todos.

Como ativista contra o racismo aponto que a adoção de critérios raciais em políticas públicas, exigirá do estado, para a definição dos beneficiários da legitimação da crença em ´raças´ nos conferindo identidades raciais que não temos e não queremos no Brasil.

Com tal premissa, aponto que onde o estado estatizou o conceito de direitos raciais/étnicos separados produziu uma sociedade dividida e isso resultou em ódios e mais ainda, racismo. Em razão disso, reafirmo, os exemplos dos EUA e Ruanda, que V.S., expressamente contesta como ineptos por razões históricas.

Porém, nos EUA as leis de segregação afirmaram convicções raciais de pretos e brancos, e a divisão racial continua profunda, produzindo o conhecido fenômeno do niilismo social dos afro-americanos. Em 2010, 5% estão nas prisões. 50% dos jovens 16-24 estão sob custódia da justiça. É uma trágica calamidade social.

O caso de Ruanda é ainda mais emblemático: o colonizador por razões de dominação outorgou direitos distintos à etnias Tutsis e Hutus, no século XIX. Agora, independente como estado nacional, aquele povo que viveu em harmonia por milhares de anos, protagonizam o que V.S. denomina a ´primeira guerra mundial africana´, com o maior genocídio contemporâneo.

Portanto, ilustre professor, a minha oposição às leis raciais e a defesa que faço de Ações Afirmativas, para a inclusão dos mais pobres em igualdade de condiçoes, vetam o uso da ´raça´ como diferencial, pois para incluir uma ´raça´, há-de se excluir a outra, e com isso, semente de conflitos raciais que não desejamos.

Parabenizo pela lição histórica que nos entregou, porém, a questão de políticas pública raciais não se prende a reparação histórica das mazelas do passado, pois a sua utilização representa a condenação de futuras gerações a divisão e ódio racial que não temos o direito de lhes impor.

Saúdo e apresento meus respeitosos cumprimentos.

José Roberto F. Militão, membro da Comissão de Assuntos AntiDiscriminatórios - CONAD/OAB-SP

Anônimo disse...

Sr Alencastro, são legítimas suas colocações e a questão que está em debate realmente não discute a escravidão e suas injustiças tão bem colocadas em seu artigo.
As cotas em si, não devem servir de algum tipo de reparo porque a própria ideia em si não faz o menor sentido. Temos que caminhar olhando para o futuro, uma educação de base é a perspectiva a ser alcançada para que não haja necessidade de cotas, e estas poderiam ser temporárias e voltadas para a grande maioria de brasileiros, indios, brancos, negros e pardos de baixa renda.
Cotas sociais e temporárias. Por favor, não devemos nivelar por baixo para tornar a universidade acessível e sim melhorar as condições do indivíduo para que possa alcançá-la.

Anônimo disse...

Eu usaria outro argumento. Os dados mostram em todos os processos de cota que esse grupo não teve desempenho acadêmico inferior aos demais. E em muitos casos, são os melhotes. Assim, e até para melhorar o nível da qualidade, haveria cota total nas universidades públicas e nas privadas via subsídio.

Mallutita disse...

Sou mulher, negra, tenho 56 anos e estou iniciando uma graduação numa universidade pública, Ciências Sociais, trabalho desde os 14 anos para ajudar minha mãe "branca" a criar-nos, os filhos negros, do pai negro e ausente.Responsabilizei-me, junto com minha mãe, pela estruturãção e desesenvolvimento de minha família,( irmão, sobrinho e meu filho), fruto de meu casamento desfeito com um homem negro, motivado por violência. Meu irmão é funcionário público (técnico em informática), meu sobrinho, func. público e corretor de imóveis, meu filho engenheiro cívil, trabalha na Petrobras. Eu frustrei algumas realizações pessoais no passado, para ver aqueles por quem me responsabilizei, numa situação melhor do que a minha, num futuro próximo.
Na sala de espera do local onde trabalho, observando a indiferença com que a mídia escrita e de entreterimento (revistas em geral), refletem inadequadamente nossa sociedade, e não me sentindo representada em nenhum daqueles veículos de informações, resolvi colocar junto com : Veja, Caras, Contigo, etc, a revista Raça, que traz matérias diversas e capas com negras e negros das mais variadas profissões e posições sociais.

Não quero servir de exemplo para ninguém. Superei algumas de minhas catarses com muitas leituras, questionamentos, necessidades, tolerância e compreensão, e as vezes, algumas cervejas.rs
Ninguém merece conviver com esse tipo de comportamento social entre as pessoas, muito menos nós, negros, pardos, afro-descendentes que ajudamos a construir com suor, sangue,lagrimas e risos, a sociedade brasileira, no nosso caso, muito mais sangue e suor e lagrimas.
Se uma capa de revista produz um absurdo desses imagina aos vivo e a cores.
Minha maior preocupação são as crianças negras, pardas , brancas, índias, ativas, perceptivas, emudecidas e emulativas , reproduzindo nossas ações, para o bem ou para o mal.
Sou totalmente a favor das cotas. Neste momento ela é mais do que necessária, ela é premente, embora tardia para gerações e talentos abortados no passado.
Me senti muito bem. Meus patrões estranharam, fizeram alguns comentários, mas como antiguidade é posto, me permitiram esta atitude em prol de minha auto-estima apesar de já a ter elevada, rs. Pois acreditem, por diversas vezes observei clientes assustarem-se e virarem a revista Raça, jogada displicentemente no sofá, ao depararem-se com a capa com a foto de um negro(a), outros cobrirem com a Caras ou outra revista qualquer, a Raça, enquanto permaneciam na sala de espera outras situações e questionamentos bizarros em relação aquela revista eu também ouvi e vi. Naqueles instantes decidi que meus filhos (aqueles que cativei) não passariam por isso numa relação de trabalho. Respeito sim, hierarquia e discriminação disfarçada não, não para os meu filhos. Acredito que consegui realizar esta parte de meu sonho, a outra parte estou realizando hoje, fazendo minha graduação.

luiz felipe de alencastro disse...

Mallutita
Muito obrigado por seu depoimento.

Anônimo disse...

Minha nossa, eu não sabia que a história do Brasil era tão "negra" assim. Estou indignado, mas como diria um amigo meu: Cada qual, como seu cada qual. Eu diria, cada um de nós vive o seu próprio tempo e assim, deixemos que os nossos avós e bisavós contem o que ocorreu e escrevam as páginas da história que fascina e que nos transporta ao sofrimento e por outra lado, nada mais de pode fazer contra o que está feito, pois o tempo hábil faz parte apenas do presente.

Unknown disse...

Lucidez, conhecimento e argumentação não fazem mal a ninguém (aliás, pensando bem, fazem sim...). Agradeço ao professor Alencastro por elencar e organizar informações de forma a sustentar o sistema de cotas que representa um avanço na sociedade brasileira.

Gil disse...

Como brasileiro, tenho essa questão como fundamental para alcançarmos a efetiva democracia. O termo "raça" surgiu como justificativa biológica para o preconceito. Não faz o menor sentido tratar dessa questão por esse viés. Na minha opinião, temos que considerar que os afro-descendentes sofreram e ainda sofrem com o preconceito velado, muitas vezes sob o discurso da democracia "racial". É uma barreira invisível que vai muito além da condição financeira e que só quem vive isso na pele, no dia-a-dia sabe o quanto o preconceito influencia no seu futuro. Tenho claramente que possíveis conflitos entre pessoas brancas e negras só acontecem no imaginário de quem ainda não tem a conciência que eles já existem. A velacidade da questão é que não nos permite avançar. O preconceito e o tratamento diferenciado existe sim e impede que pessoas que produz mais melanina que eu por exemplo, que sou descendente de japonês; tenha as mesmas oportunidades e acessos.
Investimento na educação de base é primordial, mas as cotas, como parte de um conjunto de políticas afirmativas, garantirá a participação nas decisões do País, dessa população que representa a maioria do Brasil. E não tem pq. um programa excluir o outro.
Numa democracia, todos devem ter as mesmas oportunidades.

Anônimo disse...

Saudações Quilombolivariana!Luiz Felipe de Alencastro a sua exelente argumentação e o detalhamento riquissimo da questão negra afro-brasileira agrada uns e desgraça outros(capiteãs de matos)
mas fica claro as forças ocultas dominantes contrarias a justiça e reveidicações dos excluidos e marginalizados na história do Brasil, estão sempre e perversamentos atentos é Davi desarmado contra Golias super armado?

Revolução Quilombolivariana!1PARTE
Viva Zumbi! Viva Che!Viva Hugo Chávez!
Conscientização!Justiça !Prosperidade! Solidariedade!
Fraternidade!Amor! Paz! Socialismo Quilombolivariano!
Ao Nosso Povo! Viva Brasil! Venceremos Feliz 2010!
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Manifesto em solidariedade, liberdade e desenvolvimento dos povos afro-ameríndio latinos, no dia 01 de maio dia do trabalhador foi lançado o manifesto da Revolução Quilombolivariana fruto de inúmeras discussões que questionavam a situação dos negros, índios da América Latina, que apesar de estarmos no 3º milênio em pleno avanço tecnológico, o nosso coletivo se encontra a margem e marginalizados de todos de todos os benefícios da sociedade capitalista euro-americano, que em pese que esse grupo de países a pirâmide do topo da sociedade mundial e que ditam o que e certo e o que é errado, determinando as linhas de comportamento dos povos comandando pelo imperialismo norte-americano, que decide quem é do bem e quem do mal, quem é aliado e quem é inimigo, sendo que essas diretrizes da colonização do 3º Mundo, Ásia, África e em nosso caso América Latina, tendo como exemplo o nosso Brasil, que alias é uma força de expressão, pois quem nos domina é a elite associada à elite mundial, é de conhecimento que no Brasil que hoje nos temos mais de 30 bilionários, sendo que a alguns destes dessas fortunas foram formadas como um passe de mágica em menos de trinta anos, e até casos de em menos de 10 anos, sendo que algumas dessas fortunas vieram do tempo da escravidão, e outras pessoas que fugidas do nazismo que vieram para cá sem nada, e hoje são donos deste país, ocupando posições estratégicas na sociedade civil e pública, tomando para si todos os canais de comunicação uma das mais perversas mediáticas do Mundo. A exclusão dos negros e a usurpação das terras indígenas criaram-se mais e 100 milhões de brasileiros sendo este afro-ameríndio descendente vivendo num patamar de escravidão, vivendo no desemprego e no subemprego com um dos piores salários mínimos do Mundo, e milhões vivendo abaixo da linha de pobreza, sendo as maiores vitimas da violência social, o sucateamento da saúde publica e o péssimo sistema de ensino, onde milhões de alunos tem dificuldades de uma simples soma ou leitura, dando argumentos demagógicos de sustentação a vários políticos que o problema do Brasil e a educação, sendo que na realidade o problema do Brasil são as péssimas condições de vida das dezenas de milhões dos excluídos e alienados pelo sistema capitalista oligárquico que faz da elite do Brasil tão poderosas quantos as do 1º Mundo. É inadmissível o salário dos professores, dos assistentes de saúde, até mesmo da policia e os trabalhadores de uma forma geral, vemos o surrealismo de dezenas de salários pagos pelos sistemas de televisão Globo, SBT,BAND.Record e outros aos seus artistas, jornalistas, apresentadores e diretores e etc. Movimento Revolucionário Socialista (Seja um,uma) QUILOMBOLIVARIANO
O maior blog de Chávez e Chavista das Américas
vivachavezviva.blogspot.com
quilombonnq@bol.com.br
Organização Negra Nacional Quilombo
O.N.N.Q. Brasil .Fundação 20/11/1970
Por Secretário Geral Antonio Jesus Silva

Anônimo disse...

Hello foi a 3ª vez que encontrei a tua página e adorei imenso!Bom Projecto!
Adeus