Há muitos artigos sobre os 50 anos de Brasília. Fernando Rodrigues, na Folha, lembra, com toda razão, a discriminação social urbana que jogou os pobres para as periferias (vi uma vez um documentário numa K7 de péssima qualidade, mas interessantíssimo, que falava dos acidentes de trabalho e da violência contra os peões durante a construção de Brasília). Porém, Fernando Rodrigues se engana quando critica a proporção dos salários dos funcionários públicos na massa salarial da cidade e, por tabela, no PIB da região. Ora, o Brasil de hoje é várias vezes maior que o Brasil de 1960 e o governo federal também teria um custo considerável se tivesse ficado no Rio de Janeiro ( é a Counterfactual history de que falo no meu artigo do Estadão).
Paulo Rabelo de Castro, no mesmo jornal, fala sobre os prejuízos sofridos pelo Rio com a mudança da capital.
Toquei neste assunto numa coluna da Veja em 1997 (de onde tirei a ilustração acima, feita por Luiza Ruberti). Também falei da identidade nacional do Rio e, em particular, de Copacabana aqui neste post.
Paulo Rabelo de Castro, no mesmo jornal, fala sobre os prejuízos sofridos pelo Rio com a mudança da capital.
Toquei neste assunto numa coluna da Veja em 1997 (de onde tirei a ilustração acima, feita por Luiza Ruberti). Também falei da identidade nacional do Rio e, em particular, de Copacabana aqui neste post.
Segue abaixo o artigo que publiquei hoje no Estadão.
A GRANDE MUDANÇA
Os 50 anos da fundação de Brasília trazem atualidade a uma pergunta feita desde 1960: valeu a pena transferir a capital federal? A interrogação é difícil de ser respondida em toda sua complexidade. Talvez, algum pesquisador elabore um dia uma Counterfactual history descrevendo o Brasil em 2010 caso Brasília não existisse. Seguindo assim o exemplo do célebre estudo counterfactual sobre a situação em que os Estados Unidos se encontrariam se não houvesse estradas de ferro, feito por Robert Fogel, prêmio Nobel de Economia (1993). Na ausência de estudos deste tipo sobre Brasília, cabe alinhar algumas consequências da mudança de capital, acontecimento que sobressai como um dos eventos políticos mais importantes da história brasileira no século passado.
O sucesso mais óbvio da nova capital foi a concretização de seu projeto geopolítico. Tal como as capitais regionais transferidas para locais mais integrados aos circuitos de comunicação, como a mudança de Oeiras para Teresina (1851), de Ouro Preto para Belo Horizonte (1897) ou de Goiás para Goiânia (1937), Brasília recentrou, em escala nacional, a ocupação e o povoamento do território. Assim, realizaram-se os objetivos vislumbrados quando o Tratado de Madri (1750) redefiniu as fronteiras da América do Sul.
Também com propósitos geopolíticos, outras cidades foram criadas ou reformadas nas últimas décadas para sediar novas capitais nacionais. Mas a transferência da capital paquistanesa para Islamabad (1967), da capital da Costa do Marfim para Yamussukro (1985) ou da capital nigeriana para Abuja (1991), não trouxe, nos seus respectivos países, transformações políticas e sociais tão profundas como no caso brasileiro. Brasília assegurou ainda uma maior eficiência ao federalismo brasileiro, afastando o país das distorções latino-americanas, notadamente da Argentina e do México, onde as capitais federais pesam de maneira desproporcionada sobre o governo central. Mas Brasília, ou melhor, o isolamento do governo no Planalto Central, também tem sua parte de responsabilidade nos desastres políticos que assolaram o País.
Durante quase 200 anos, da transferência da capital do vice-reinado, em 1763, até 1960, o Rio de Janeiro foi o centro cultural, político e econômico do País. Depois da Independência, a cidade se transformou na escola da nação, onde os escritores do Norte, como Gonçalves Dias, José de Alencar ou Aluízio de Azevedo, e militares do Sul, como o almirante Tamandaré, Luiz Carlos Prestes e Cordeiro de Farias, aprenderam a conhecer o País.
Neste contexto, Jânio Quadros, o primeiro presidente a tomar posse em Brasília, foi provavelmente o primeiro chefe de Estado que não havia exercido anteriormente funções administrativas ou políticas no Rio de Janeiro, que não havia frequentado a escola da nação (eleito deputado federal em 1958, ele não assumiu o mandato). Seu isolamento político e sua renúncia abrem a sucessão de crises que desembocam na ditadura.
Numa capital federal desprovida de imprensa influente, de opinião pública, de associações patronais, de trabalhadores industriais, de sindicatos, de teatros e até de uma massa consistente de estudantes, encenou-se o drama da república autoritária. O Congresso e as instituições funcionavam de maneira caricatural, ilustrando a tese de Max Weber sobre o efeito nefasto da desrepresentação política. De fato, escrevendo sobre o Parlamento alemão sob o governo Bismarck (1871-1890), Weber apontou o problema gerado pelo exercício caricatural dos mandatos parlamentares. Dizia-se que o Parlamento alemão era fraco porque era constituído por parlamentares incompetentes ou corruptos. Mas para Weber, a relação de causalidade devia ser invertida: era a fraqueza política do Parlamento que atraía para seu seio políticos medíocres. Tal era o processo que ocorria em Brasília.
Enquanto a cúpula militar e civil perpetrava seus desmandos, a tríade formada pelos gestores de obras públicas, pelas grandes empreiteiras e pelos parlamentares e funcionários lobistas incrustava-se nas contas públicas. O esquema se esboçou no governo Kubitschek, durante a construção de Brasília, e continuou depois da ditadura. Foi então que Adib Jatene, ministro da Saúde do governo Collor, protestou, em 1992, com uma frase que retrata toda uma época: "Quem faz o Orçamento da República são as empreiteiras".
Depois disso, muita água rolou pela barragem do Paranoá. O Brasil mudou. Tudo terá mudado?
A GRANDE MUDANÇA
Os 50 anos da fundação de Brasília trazem atualidade a uma pergunta feita desde 1960: valeu a pena transferir a capital federal? A interrogação é difícil de ser respondida em toda sua complexidade. Talvez, algum pesquisador elabore um dia uma Counterfactual history descrevendo o Brasil em 2010 caso Brasília não existisse. Seguindo assim o exemplo do célebre estudo counterfactual sobre a situação em que os Estados Unidos se encontrariam se não houvesse estradas de ferro, feito por Robert Fogel, prêmio Nobel de Economia (1993). Na ausência de estudos deste tipo sobre Brasília, cabe alinhar algumas consequências da mudança de capital, acontecimento que sobressai como um dos eventos políticos mais importantes da história brasileira no século passado.
O sucesso mais óbvio da nova capital foi a concretização de seu projeto geopolítico. Tal como as capitais regionais transferidas para locais mais integrados aos circuitos de comunicação, como a mudança de Oeiras para Teresina (1851), de Ouro Preto para Belo Horizonte (1897) ou de Goiás para Goiânia (1937), Brasília recentrou, em escala nacional, a ocupação e o povoamento do território. Assim, realizaram-se os objetivos vislumbrados quando o Tratado de Madri (1750) redefiniu as fronteiras da América do Sul.
Também com propósitos geopolíticos, outras cidades foram criadas ou reformadas nas últimas décadas para sediar novas capitais nacionais. Mas a transferência da capital paquistanesa para Islamabad (1967), da capital da Costa do Marfim para Yamussukro (1985) ou da capital nigeriana para Abuja (1991), não trouxe, nos seus respectivos países, transformações políticas e sociais tão profundas como no caso brasileiro. Brasília assegurou ainda uma maior eficiência ao federalismo brasileiro, afastando o país das distorções latino-americanas, notadamente da Argentina e do México, onde as capitais federais pesam de maneira desproporcionada sobre o governo central. Mas Brasília, ou melhor, o isolamento do governo no Planalto Central, também tem sua parte de responsabilidade nos desastres políticos que assolaram o País.
Durante quase 200 anos, da transferência da capital do vice-reinado, em 1763, até 1960, o Rio de Janeiro foi o centro cultural, político e econômico do País. Depois da Independência, a cidade se transformou na escola da nação, onde os escritores do Norte, como Gonçalves Dias, José de Alencar ou Aluízio de Azevedo, e militares do Sul, como o almirante Tamandaré, Luiz Carlos Prestes e Cordeiro de Farias, aprenderam a conhecer o País.
Neste contexto, Jânio Quadros, o primeiro presidente a tomar posse em Brasília, foi provavelmente o primeiro chefe de Estado que não havia exercido anteriormente funções administrativas ou políticas no Rio de Janeiro, que não havia frequentado a escola da nação (eleito deputado federal em 1958, ele não assumiu o mandato). Seu isolamento político e sua renúncia abrem a sucessão de crises que desembocam na ditadura.
Numa capital federal desprovida de imprensa influente, de opinião pública, de associações patronais, de trabalhadores industriais, de sindicatos, de teatros e até de uma massa consistente de estudantes, encenou-se o drama da república autoritária. O Congresso e as instituições funcionavam de maneira caricatural, ilustrando a tese de Max Weber sobre o efeito nefasto da desrepresentação política. De fato, escrevendo sobre o Parlamento alemão sob o governo Bismarck (1871-1890), Weber apontou o problema gerado pelo exercício caricatural dos mandatos parlamentares. Dizia-se que o Parlamento alemão era fraco porque era constituído por parlamentares incompetentes ou corruptos. Mas para Weber, a relação de causalidade devia ser invertida: era a fraqueza política do Parlamento que atraía para seu seio políticos medíocres. Tal era o processo que ocorria em Brasília.
Enquanto a cúpula militar e civil perpetrava seus desmandos, a tríade formada pelos gestores de obras públicas, pelas grandes empreiteiras e pelos parlamentares e funcionários lobistas incrustava-se nas contas públicas. O esquema se esboçou no governo Kubitschek, durante a construção de Brasília, e continuou depois da ditadura. Foi então que Adib Jatene, ministro da Saúde do governo Collor, protestou, em 1992, com uma frase que retrata toda uma época: "Quem faz o Orçamento da República são as empreiteiras".
Depois disso, muita água rolou pela barragem do Paranoá. O Brasil mudou. Tudo terá mudado?
4 comentários:
O documentário a que o senhor alude deve ser o "Conterrâneos", de Wladimir Carvalho. Assisti a uma cópia bem razoável em VHS que consta do acervo do Instituto Itaú Cultural aqui de SP.
Grande abraço!
Leandro Moura
Gostaria de entender melhor como funciona esse mecanismo que fez com que o isolamento de Brasilia tenha sido um grande fator para alguns "desastres" na historia do país.
A tese seria, por acaso, de que se o regime de 64 tivesse sede no Rio de Janeiro, haveria algum tipo de revolta popular? Barricadas, quem sabe?
Me desculpe a franqueza, mas isso me parece um delírio de grandeza. É uma espécie de "ahh, se eu estivesse lá" , ou um "ahh, se fosse comigo..." . Bravata. Por quantos anos o senhor Getulio Vargas morou mansamente no Palácio do Catete? Oras...por que os valentes e bravos cariocas nao derrubaram a Velha Republica eles mesmos?
Outra coisa; nenhum comentário sobre a cidade em si? Acho que se fosse o aniversário de Paris voce encontraria belas palavras. Quem sabe até esqueceria da existencia dos "banlieu". Nao é interessante que Brasília seja a única cidade no mundo cujas opiniões sempre, obrigatoriamente, incluem o fato de que existe uma periferia pobre (como nao se fosse uma espécie de regra urbanística mundial)?
Na verdade, eu acho que todo o preconceito e raiva velada por Brasília mereceria uma tese!
Abraços,
Henrique Montenegro.
Caro Monteiro,
Não se trata de gostar ou desgostar de Brasília, e muito menos de ter "preconceito" ou "raiva" pela cidade, mas de apontar as consequências políticas da mudança da capital federal.
A respeito do Rio, vc fez algumas conjeturas e citou o período Getúlio Vargas. Deveria ter ficado no período da ditadura de 1964 (ao qual eu me referia no artigo), assim vc veria que o Rio fez muito mais que desencadear “algum tipo de revolta popular” ou de levantar « barricadas ».
As eleições para governador em 1965, levaram ao governo de MG, Israel Pinheiro, e ao governo da Guanabara, Negrão Lima, ambos ligados a JK que se reforçava contra a ditadura. A oposição carioca elegeu também ao Senado, o grande Mário Martins, cassado pelo AI 5 em 1968. Foi por causa destas derrotas que a ditadura instaurou o AI-2, acabando com as eleições diretas para governador , presidente, e enfiando de vez o pé na jaca do autoritarismo.
Em 1970 a Guanabara elegeu o ùnico governador biônico da oposição, do MDB, durante toda a ditadura, Chagas Freitas. Foi para sufocar a oposição carioca e melar o governo do Rio de Janeiro, causando uma desordem administrativa que se faz sentir até hoje, que a ditadura fez, em 1965, a fusão entre a Guanabara e o estado do Rio do Janeiro. No meio tempo, a ditadura matou dois dos maiores jornais do Brasil, cariocas e oposicionistas, o "Correio da Manhã", e a "Última Hora"
Abraços
Corrigindo
"Foi para sufocar a oposição carioca e melar o governo do Rio de Janeiro, causando uma desordem administrativa que se faz sentir até hoje, que a ditadura fez -, em 1975 -, a fusão entre a Guanabara e o estado do Rio do Janeiro"
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