domingo, 17 de maio de 2009

Making of do artigo "Commodities por sapatos" sobre a viagem de Lula

Trecho do livro Tratado das coisas da China (1570), escrito pelo dominicano alentejano, Frei Gaspar da Cruz, pioneiro da sinologia ocidental.

No artigo no caderno Mais, da Folha não falei de um assunto importante, que não estava em pauta, mas é ligado à China . Na entrevista que deu ontem para a Folha, Rodrigo Tavares Maciel, secretário-executivo do Conselho Empresarial Brasil-China, que mora e trabalha na China há 8 anos, ilustrava a falta de interesse com a China, primeira parceira comercial do Brasil: “quando eu visito a embaixada chinesa em Brasília ou o consulado chinês em São Paulo ou no Rio, sou recebido por vários diplomatas chineses que falam português. Não temos ninguém no Itamaraty, ou no governo brasileiro, que fale chinês. Você chega à embaixada brasileira em Pequim e é recebido por secretárias que falam espanhol ou inglês. Não tem cabimento”.

A reflexão poderia ser estendida às universidades brasileiras. Os especialistas brasileiros sobre a China ainda são pouco numerosos. Portugal e os missionários portugueses foram os primeiros europeus a estudar a China a partir da feitoria de Macau, estabelecida desde 1557. O Colégio São Paulo de Macau, dos jesuítas portugueses, formou os primeiros sinólogos do mundo. Macau permaneceu sob soberania portuguesa até 1999. Há, portanto, ampla documentação sobre a China em língua portuguesa, estudada desde sempre pelos especialistas europeus, americanos e asiáticos. Não conheço historiador ou cientista social brasileiro que fale e leia madarim e trabalhe nos arquivos de Macau. Pelo que sei, no departamento de História da USP, a maior universidade do país, a situação até piorou. Nos anos 1980, havia o professor Ricardo Mário Gonçalves que sabia mandarim e dava aulas sobre civilizações do Extremo Oriente. Agora, há muito mais estudantes interessados na China, mas não existe nenhum especialista na área no departemento. Ora, no caso da China, como no caso da África, o papel da história tem um caráter fundador: é essencial para dar a dimensão do tema e abrir caminhos para outros setores das ciências sociais e da biociência.Quando o saudoso Antônio Alçada Baptista dirigia, nos anos 1980-1990 a Fundação Oriente (na época, cheia de dinheiro doado pelos cassinos de Macau) procurou, em vão, projetos de pesquisa brasileiros sobre a China que pudessem serem financiados pela Fundação.

Nunca aconteceu isso antes : na época em que a Inglaterra era a primeira parceira comercial do Brasil, no século XIX, os dirigentes brasileiros sabiam das coisas inglesas, iam a Londres e liam inglês. Idem para os Estados Unidos, primeiro parceiro comercial do Brasil no século XX. Quando se sabe que a formação de especialistas em um novo campo de pesquisas demora uma geração, fica-se perplexo. Taí a África que não me deixa mentir.

No começo dos anos 1960, o Itamaraty viu logo que Portugal ia ser posto para a rua de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé. Na mesma altura, José Honório Rodrigues escreveu um livro pioneiro, Brasil e África,outro horizonte (1961), que abria muitas pistas de pesquisa. Paralelamente, a documentação portuguesa sobre a África era enviada gratuitamente para as grandes universidades brasileiras e muito bem organizada e catalogada no Gabinete Português de Leitura, no Rio. Mas só agora – 40 anos depois, seu doutor ! – no começo do século XXI, começaram a aparecer as primeiras teses brasileiras consistentes sobre a África lusófona. No meio tempo, a produção anglo-saxônica (inglesa, americana, canadense e australiana) tomou distância, formando inclusive importantes especialistas brasileiros de Angola, como Roquinaldo Ferreira e Mariana Cândido, que foram logo recrutados por grandes universidades americanas. (O carioca Roquinaldo, o maior conhecedor do arquivo de Luanda - na opinião do arquivista de là -, e autor de uma tese inovadora sobre Angola feita na Universidade da California, fez concurso para um posto de história África Central na Unicamp e não passou...passons. Teve, na hora, ofertas de universidades americanas e, em especial de Joseph C. Miller, o mais importante especialista mundial da história de Angola, da University of Virginia, onde agora Roquinaldo é um professor muito respeitado).

Outro coisa, falei no artigo sobre o livro (Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso) do imã Abdurrahmã Al-Baghdádi que ficou entre 1865 e 1868 no Brasil, esteve no Rio, Bahia e Pernambuco, onde conheceu africanos muçulmanos brasileiros. Há um link do livro traduzido para o inglês por Yacine Daddi Addoun e Renée Soulodre-La France. Conheci Yacine quando estive no Harriet Tubman Center de estudos afroamericanos da Universidade de York (Toronto), é um cara sério, boa praça, que trabalha sobre o fim da escravidão na Argélia e se interessa pelos trabalhos dos historiadores brasileiros que fazem pesquisa sobre Angola.

5 comentários:

João Paulo Rodrigues disse...

Talvez tenha sido mais fácil para os chineses terem diplomatas fluentes em português pelo fato de já haver bastante gente (mesmo com o acentuado declínio pós 1960) que falasse português na própria China. O inverso não é verdadeiro. Aprender chinês leva tempo. Já há ingressantes na escola Rio Branco do Itamaraty que estão aprendendo chinês (conheço pelo menos uma estudante). É coisa de alguns poucos anos para termos esse pessoal trabalhando.

Cláudia disse...

Quem andou lá por Macau foi a Janice Theodoro, mas a especialidade dela é América pré-colombiana.

João disse...

Sei de um mestrando, graduado pela UERJ, que está no Japão estudando a presença portuguesa naquelas paragens. Mas sobre a China, realmente, o que resta é um silêncio.

biografia disse...

Caro Luiz Felipe,

quisera eu poder terminar meu curso de Historia que comecei na USP e interrompi por problemas medicos aqui em Taiwan, na National Taiwan University... meus problemas de saude sanaram, meu impeto de estudar e' grande, mas o Departamento, obvio, nao ve longe. Negou por varias vezes meus pedidos inumeros de transferencia e intercambio.

abraco,
Denny Yang

Joandre Oliveira Melo disse...

Caro Sr. Luiz Felipe, boa noite:
Acredito que exista uma certa indiferença em relação aos assuntos sobre a China. No Brasil, ainda estamos passando por uma crise de identidade e o importante ainda é reviver nossas raízes Íbero-africanas ou descobrir a que fomos destinados. Como Bem o disse Sérgio Buarque de Holanda, "somos desterrados em nossa terra".

Como deves saber, todo o país é cortado por um abismo que se aprofunda entre ricos e pobres. Além de uma propaganda maciça dos povos saxões. Creio que as dificuldades financeiras, aliadas as dificuldades culturais podem ser um empecilho ao aprofundamento do estudo aos assuntos provenientes da China. Acredito que esta mentalidade mudará a partir da academia.

Abraços de um Professor de história e pesquisador.
Joandre Oliveira Melo