quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Ontem Obama destoou

Walton Ford, “Falling Bough”, 2002,Watercolor, Cotesia Paul Kasmin Gallery, New York

“Our journey has never been one of shortcuts or settling for less. It has not been the path for the faint-hearted, for those who prefer leisure over work, or seek only the pleasures of riches and fame. Rather, it has been the risk-takers, the doers, the makers of things -- some celebrated, but more often men and women obscure in their labor -- who have carried us up the long, rugged path towards prosperity and freedom. For us, they packed up their few worldly possessions and traveled across oceans in search of a new life. For us, they toiled in sweatshops and settled the West, endured the lash of the whip and plowed the hard earth.For us, they fought and died in places Concord and Gettysburg; Normandy and Khe Sahn”
No meio de carradas de editoriais e análises de jornais citando frases do discurso de posse de Obama, separo do texto da fala, publicado no
New York Times, duas frases do trecho acima que me parecem fundamentais e sobre as quais não li ainda nenhum comentário (mais ainda é cedo nesta madrugada do dia 21).
A primeira frase é a única referência direta à escravidão nos Estados Unidos que aparece no discurso: “For us,... they ... endured the lash of the whip”“Por nós, eles sofreram o flagelo da chibata”. Parece pouco. Sem referência ao arrancamento dos africanos de sua terra e à sua deportação para a América (enquanto a frase anterior fala dos emigrantes pobres que vieram para o país), sem referência à luta dos escravos contra a escravidão. Mas para mim a frase destacou-se instantâneamente do discurso. Talvez porque eu estivesse esperando ouvir algo do gênero, e porque as palavras são fortes: they “endure the lash of the whip”. “The lash of the whip” é quase uma onomatopéia do assobio do açoite cortando o ar antes de cortar o corpo. Dita por aquele homem negro, num momento como aquele, naquele lugar, a frase deve ter ressoado forte na cabeça de muita gente. Reinserida no parágrafo, a frase, no entanto, destoa. “Por nós, eles empacotaram seus poucos pertences e atravessaram oceanos à procura de uma nova vida. Por nós, eles enfrentaram a exploração no trabalho, aguentaram o flagelo da chibata e araram a terra dura”. Ser açoitado toda a vida, junto com seus filhos e netos, depois de ter sido deportado da Africa sem saber para onde, como acontecia com os negros, é bem diferente de pegar no pesado como imigrante europeu, asiatico ou latino-americano recém chegado na América. No fundo, a frase destoa porque a escravidão destoa na escala da história dos Estados Unidos e do Ocidente. Noto também que Obama não mencionou sequer uma vez os índios e os desastres da conquista colonial.
A segunda frase vem logo em seguida e menciona quatro batalhas da história americana: “For us, they fought and died in places Concord and Gettysburg; Normandy and Khe Sahn”.
Concord (1775), perto de Boston, primeira batalha da Revolução Americana, Gettysburg (1863) marcou a virada em favor do exército do Norte na Guerra da Secessão, Normandia (1944), o desembarque dos Aliados na França e Khe Sahn (1968). Khe Sahn? Catso, o que Khe Sahn, uma vitória sem sentido, numa guerra calamitosa como a do Vietnã vem fazer numa lista prestigiosa dessa?
Passada a primeira indignação, me dou conta que Obama enterra de vez o contencioso da guerra do Vietnã (ainda levantado por John Kerry na presidencial de 2004) e da minha geração. Encadeada nas grandes batalhas da história americana, Khe Sahn deixa de ser um disparate, deixa de ser o desastre que foi, e dissolve-se como um lugar distante onde morreram soldados americanos. Só isso. Eleito por muitos americanos esperançosos de que ele saia logo do Iraque, outro disparate, outro desastre, Obama jogou o Vietnã para trás dos armários do porão da história americana. Ele provavelmente está certo e talvez este elogio à guerra furada que terminou em retirada no Vietnã seja uma maneira de encaminhar a retirada do Iraque. Mas minha geração, meus amigos americanos que viveram o drama ou que fugiram para a França para não serem mandados para o Vietnã, devem estar se sentindo, como eu me sinto agora, meio esquisito. Obama destoou da gente. Ele pode ter razão. Pero nosostros también!
P. S. – O artigo de hoje, sexta, de Paul Krugman no NYT critica as »platitudes » que Obama disse sobre a crise economica no seu discurso de posse. Para ele, Obama também destoou, também ficou aquém do que se esperava.

4 comentários:

Manoel disse...

Excelente comentário ao discurso de Obama. Bom saber que teremos novamente seus posts por aqui. no google reader tava constando que esse blog era dos mais obscurso (pois nunca se publicava nada, hehe).

Raphael Neves disse...

Gostei do comentário, professor.

Acho que das duas palavras usadas para traduzir "endured", ou seja, "sofreram" e "aguentaram", a segunda é a melhor, certo?

Aliás, vi que o sr. já segue a nova regra ortográfica... mas o nome do blog ainda tem o trema. Mudança meio besta, não é?

Forte abraço,
Rapha

Anônimo disse...

se decepcionou a alguns foi porque Obama falava para a História e não para a multidão presente propriamente, uma multidão com ânsia de ouvir frases de efeito sobre aflições do presente... cada minoria pode até ter se sentido excluida só porque não foi citada por Obama

Anônimo disse...

Obama foi eleito pelo partido Democrata. Não se podia esperar que fizesse um discurso (nem um governo) mais radical que esse.

Apesar de ser negro, está comprometido com a América branca e seus valores. Por isso foi eleito.

A candidatura que representava a voz do escravo chicoteado estava no partido Verde, sem chance de ganhar a eleição.