segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Paredes de Paris

Este é um paredaço de Paris. A fachada da Capela da Sorbonne, construída em 1635 por ordem de Richelieu, cujo túmulo ali se encontra, acabou de ser restaurada e polida. A cor limoenta, quase preta, que a caracterizava, deu lugar à pedra viva, amarelada, clareando a praça nesta segunda feira chuvosa. É mais uma etapa da limpeza dos prédios históricos da cidade, começada em 1965, quando André Malraux era ministro da Cultura. A Capela não vê padre há muito tempo. Virou, desde a Revolução Francesa, um prédio público usado para exposições organizadas pela Sorbonne.
Alguns professores mais velhos, da geração que enfumaçou o lugar com Gitanes durante décadas, acharam a mudança meio esquisita. Com a pedra clara, a igreja retomou sua cara de monumento barroco. Não tem mais o aspecto neogótico que a envolvia a partir das paredes geminadas do resto da Sorbonne, reconstruído em 1889. A limpeza mudou a feição do prédio.
Um grupo de restauradores que está no Louvre limpando os quadros de Rembrandt, lida com um problema similar. Quando se restaurou um dos quadros do pintor holandês, o Moínho, houve uma grande celeuma. Depois da limpeza, o quadro – diz uma reportagem do Libération – perdeu a aparência tenebrosa, romântica, que fazia seu sucesso desde o século XIX. Só que Rembrandt havia pintado a tela com um tom bem mais claro, escurecido ao longo dos séculos por causa da degradação do verniz da tinta. Por isso, Ernst van de Wetering, chefe da equipe cuidando dos Rembrandt do Louvre, fez questão de declarar que a restauração não é uma questão de gôsto, mas uma questão método. Para ele, é preciso parar de olhar Rembrandt com os olhos do século XIX.
Juntei os dois assuntos porque em História é a mesma coisa. Cada época vê as coisas de um jeito, com a vista embaciada pela fumaças de seu tempo. O trabalho do historiador consiste em identificar as fumaças do tempo que encobrem os fatos do passado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Professor,

recentemente li a expressão "luzes das sombras" para caracterizar a arte do grande Rembrandt. Porque um pintor tão sensível às coisas concretas usaria cores sombrias para pintar? A propósito, recentemente aqui nos trópicos, uma restauração minuciosa e criteriosa no conjunto secular/religioso da Santa Casa de Misericórdia em Salvador, ou melhor, na velha cidade da Bahia, revelou a existência de anjinhos negros nos altares e colunas da capela da instituição - ligada, como nos ensinou mestre P. Verger - aos negreiros que iam buscar na Costa da Mina "os pés e as mãos" da elite branca que até hoje domina a cidade. Vale a pena visitar o "site" ou mesmo o próprio "sítio" da Santa Casa, numa ribanceira da Cidade Alta. Da loggia, se vê o forte de São Marcelo e os quebra-mares. Mais adiante, a África...

Milton Ohata